O termo “cultura do estupro” tem se tornado cada dia mais presente no ativismo feminista e também nas pautas da mídia seja de nicho ou hegemônica. Os casos recentes envolvendo jogadores de futebol, como Robinho e Daniel Alves, além de outras figuras públicas proeminentes na cultura midiática têm intensificado o debate. Primeiramente, é importante entender que o termo é englobado pela violência sexual, expressão que é considerada um termo guarda-chuva e que abrange estupro, agressão sexual e assédio sexual, dentre outras formas de violência. Segundo a Organização Mundial da Saúde (2012), a violência sexual pode ser “qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa, de qualquer sexo e idade, a ter, presenciar ou participar de alguma maneira de interações sexuais, ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção”.
Neste debate, iremos nos ater à cultura do estupro como conceito chave, enquanto um conjunto de comportamentos, práticas e ações que toleram e, de certo modo, estimulam o estupro praticado contra mulheres em nossa sociedade (Campos et. al, 2017). Peggy Sanday (1997) observa que o termo surgiu na década de 1970, durante a chamada segunda onda feminista, entre feministas estadunidenses. Sanday afirma que o estupro não é uma necessidade biológica, mas algo que ocorre como resultado da socialização de uma cultura e como prática de poder. Apesar dos avanços culturais e sociais observados no final do século XX, a equidade moral, sexual e social entre homens e mulheres, numa visão mais binária do debate, está longe de ser alcançada. Essa disparidade é particularmente evidente no que diz respeito à liberdade sexual plena das meninas e mulheres, que muitas vezes são julgadas com base em padrões morais e comportamentais heterodeterminados, no qual a sociedade impõe à vítima a responsabilidade pela prática do crime contra si mesma. No Brasil, o termo ganhou evidência midiática e social após o estupro coletivo praticado contra uma adolescente de 16 anos, na cidade do Rio de Janeiro, em 2016.
Renata Sousa (2017) salienta que quando uma prática é enraizada na cultura, ela se torna comum e perde sua característica de excepcionalidade. Se torna algo quase mascarado, camuflado, silencioso e normalizado. A autora observa ainda que reconhecer a existência da cultura do estupro não implica em rotular todos os homens como estupradores ou responsabilizar diretamente todos os indivíduos pela prática do estupro. No entanto, essa questão nos remete ao texto da artista visual e fotógrafa Trace Figg² que se tornou viral, postado em uma rede social digital em 2022, sobre o caso de um anestesista que foi preso em flagrante, após ser filmado estuprando uma paciente durante o parto em um hospital do Rio de Janeiro. As palavras de Figg, ‘Nem todo homem, mas sempre um homem’, nos fazem refletir sobre o quanto a cultura do estupro se materializa na misoginia e no machismo resultado de uma sociedade que se estrutura em premissas patriarcais. Que privilegia os homens de forma a legitimar tudo que é feminino como segunda categoria, sem humanidade. Estes fatores contribuem para a perpetuação da violência, especialmente contra as mulheres.
Um dos aspectos mais claros da cultura do estupro é o fato de que ela perpetua a desumanização das mulheres por meio da disseminação de termos difamatórios, da promoção da objetificação de seus corpos e a glamurização da violência sexual, especialmente notada pela normalização de estereótipos de gênero prejudiciais às mulheres e às pessoas LGBTQIAPN+. O patriarcado ensinou e ensina aos homens que os corpos das mulheres são públicos, são “consumíveis”. Transmite a mensagem de que as mulheres não são sujeitas, mas sim objetos a serem usados e descartados. É pertinente destacar ainda, que a principal caracteristica do que é considerado estupro é a ausência de consentimento, seja pelo “não” explícito ou pela incapacidade da vítima de consentir o ato.

O futebol no Brasil desempenha um papel fundamental na esfera política e, como elemento micropolítico, influencia em muitas das dinâmicas sociais e culturais. Os casos recentes associados a cultura do estupro no futebol não são de hoje e são muito mais presentes do que a mídia divulga. Um dos casos mais proeminentes em torno desta questão é o de Robinho, ex-jogador de Atlético, Real Madrid e Milan, condenado a nove anos de prisão pela Justiça italiana por sua participação em um estupro coletivo de uma albanesa em 2013. A condenação do jogador ocorreu em 2022, mas como ele havia fugido para o Brasil, não foi preso pela justiça italiana. No momento da condenação final, a reação inicial do Atlético Mineiro foi a de silenciar. Mesmo com protestos³ das mulheres no Brasil, Robinho seguia livre até recentemente, jogando futevôlei e vivendo a boa vida, enquanto os índices de estupro e feminicídio só crescem no Brasil e no mundo.
O caso Daniel Alves, condenado pela justiça espanhola também por estupro, parece ter o mesmo desfecho. Apesar da justiça espanhola ter negado diversas vezes a liberdade provisória balizada, inclusive, pelo caso Robinho. A condenação ocorreu, todavia concedendo uma pena diminuída pelo argumento que reforça a literal precificação do corpo feminino. A pena foi a metade do que foi a apresentada pela acusação, devido ao prévio pagamento de 150 mil euros. Argumento que envolve claras questões interseccionais de classe e gênero (Collins; Bilge, 2021), no qual o homem rico recebe benesses que nenhum outro receberia.
Os casos evidenciam como a cultura do futebol opera, especialmente enquanto universo naturalizado como masculino (Goellner, 2021). Os homens são deuses idolatrados e quase intocáveis, na maioria das vezes o mundo do futebol fecha os olhos para a violência contra as mulheres, particularmente quando se trata de jogadores de alto nível. A Confederação Brasileira de Futebol se manteve em completo silêncio sobre ambos os casos, bem como todo o alto escalão do futebol brasileiro. A única a se manifestar claramente, enquanto presidenta do Palmeiras e chefe de delegação dos amistosos da seleção brasileira na CBF, Leila Pereira4. Enquanto mulher num universo extremamente masculino, Leila disse sentir um tapa na cara pelo fato de Daniel Alves “pagar pela liberdade”.
Quando os jogadores são condenados por crimes como assassinato, estupro ou agressão, e continuam a ser contratados e idolatrados pelo público, isso envia uma mensagem perigosa e o mesmo templo clara, de que esse tipo de comportamento é aceitável. Ou seja, nossos corpos podem ser mortos, violentados, desumanizados e está tudo bem. Não fosse a movimentação de mulheres e torcedoras dos clubes, muitos dos casos passariam em total silêncio.
A cultura do estupro no futebol também é perpetuada pela forma como a mídia cobre esses episódios de violência. Quando há um confronto público ou discussão sobre casos como esse e problemáticas relacionadas ao machismo, masculinidade tóxica e a cultura do estupro há um recorrente questionamento em torno da vítima e suas motivações de denúncia. A tentativa de silenciar, desmerecer e questionar as vítimas é recorrente e socialmente aceita. Outro aspecto importante são os dirigentes dos clubes, que silenciam ante denúncias contra os homens, sejam jogadores ou técnicos, como demonstra o recente caso de denúncia das jogadoras do Santos contra a recontratação do técnico Kleiton Lima, acusado por 19 jogadoras de assédio. Durante o hino nacional, a equipe colocou as mãos nas bocas e ouvidos num sinal de que foram silenciadas e não foram ouvidas5.
É preciso ação e coragem para mudar essa narrativa. Enquanto o futebol for majoritariamente comandado pelos mesmos homens ricos, brancos e machistas, nada muda. Enquanto a impunidade e o pagamento de quantias voluptuosas for a tônica para crimes dessa natureza. E ainda, enquanto assassinos como o goleiro Bruno continuarem sendo idolatrados e contratados por clubes de futebol, o recado para os meninos e para a sociedade é o mesmo: podem nos matar e nos violar!
As empresas e clubes de futebol precisam adotar medidas para combater a cultura do estupro no futebol. Para combater de forma eficaz essa cultura misógina, é essencial criar ambientes seguros e inclusivos. Ações concretas que perpassam apenas campanhas de conscientização e ações pontuais que mais beneficiam a imagem clubística do que ajudam a causa. Punições enérgicas, educação contínua e incentivos às mulheres nos espaços do futebol. A luta contra a cultura do estupro no futebol requer um esforço coletivo e contínuo de todas e todos os envolvidos no esporte para desafiar e mudar as atitudes e comportamentos nocivos que contribuem para a violência contra a mulher em todas as suas nuances e peversidades. Sobre a pergunta levantada no título, custam aparentemente 150 mil euros para estuprar uma mulher, sair impune e de cabeça erguida da cadeia.
¹ Vítima de estupro coletivo no Rio conta que acordou dopada e nua | G1
² ‘Nem todo homem, mas sempre um homem’: autora de viral quer protagonismo feminino | Marie Claire
³ “Ão, ão, Robinho na prisão”: grupo protesta em praia de Santos; vídeo | Metrópoles
5 Mão na boca: jogadoras protestam contra técnico ex-Santos antes de rodada | UOL
Referências
CAMPOS, Carmen Hein de et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro?. Revista direito GV, v. 13, p. 981-1006, 2017.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Boitempo Editorial, 2021.
GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, p. e27001, 2021.
SANDAY, Peggy Reeves. The socio-cultural context of rape: A cross-cultural study. Gender violence: Interdisciplinary perspectives, p. 52-66, 1997.
SOUSA, Renata Floriano de. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 9-29, abr. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 mar. 2024.