Ronaldo Helal: ‘Brasil se crê o mais entendido em futebol’

Entrevista originalmente publicada no blog “Todo Prosa” da Revista Veja.

Se a ficção brasileira, como a de qualquer país, parece tímida ao retratar nossa maior paixão esportiva (veja nota abaixo), não se pode dizer o mesmo da literatura em sentido mais amplo. A produção cultural em torno do futebol, que tem na crônica esportiva seu gênero mais tradicional, vem ganhando nos últimos anos a contribuição da universidade, especialmente na área de sociologia. Em entrevista por e-mail, um dos representantes dessa tendência, Ronaldo Helal – doutor em sociologia pela New York University, professor de pós-graduação em comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de “Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil”, entre outros livros – tem uma tese para o eterno choro sobre o relativo silêncio de nossos escritores diante do futebol, de resto semelhante ao dos escritores de países não menos vidrados no esporte: “A diferença é que os brasileiros se creem os mais apaixonados e entendidos no assunto”.

1. A imprensa e a crítica literária vivem estranhando que o Brasil nunca tenha produzido seu “grande romance do futebol”. Isso faz algum sentido? Literatura combina com esporte?

– Veja que em 1919 Lima Barreto fundou a “Liga Anti-Futebol” e dois anos depois Graciliano Ramos escreveu uma crônica (Traços a esmo), onde dizia que o futebol seria apenas uma “moda fugaz” no país. Tudo isso em um período em que o futebol era um esporte considerado elitista. O futebol se populariza e se profissionaliza em 1933 e, a partir daí, passa a ser considerado a “paixão nacional”. É neste sentido que podemos entender a cobrança da imprensa e da crítica literária. No entanto, se compararmos com o que ocorre em outros países, onde o futebol também é paixão nacional, talvez verifiquemos a mesma “ausência”. A diferença é que os brasileiros se creem os mais apaixonados e entendidos no assunto.

2. A crônica esportiva, por outro lado, tem uma tradição gloriosa no país. Quem é ou foi, para o seu gosto pessoal, o maior representante do gênero entre nós?

– Diria que Mario Filho foi o fundador do jornalismo esportivo no país e um agente fundamental na “construção” do “país do futebol”. Suas crônicas e seus livros, principalmente “O negro no futebol brasileiro”, foram imprescindíveis para se construir uma ideia de nação brasileira por meio do futebol. Tudo isso em um momento de consolidação dos estados-nações no mundo, do projeto integracionista de Getúlio Vargas, de novas formas de conceituar o país, onde a mistura de raças passa a ser vista como um valor positivo de nossa cultura – veja, por exemplo, a obra de Gilberto Freyre, “Casa grande e senzala”. Lembremos que Mario Filho era amigo de Gilberto Freyre, que, gentilmente, prefacia “O negro no futebol brasileiro”, alçando a obra ao meio acadêmico no Brasil. Mas, para meu gosto pessoal, até porque não sou da época de Mario Filho, meu preferido é Nelson Rodrigues, seu irmão.

3. Se a ficção não fica à altura do futebol, a produção intelectual acadêmica sobre o esporte não para de crescer. Foi preciso superar preconceitos para desbravar esse campo na universidade?

– Quando comecei a pesquisar o assunto, havia pouquíssimos trabalhos acadêmicos a respeito do tema. E todos tinham um tom apocalíptico, marxista, que equacionava o futebol como “ópio do povo”. Foi a partir de um livro organizado por Roberto DaMatta em 1982 – “Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira” – que o jogo começou a virar. Antes deste livro, DaMatta tinha escrito, em 1978, “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”. Estes trabalhos apontavam para a importância de estudarmos coisas consideradas “não sérias” no país. Ou seja, como poderíamos aprender mais sobre nosso país por meio do futebol e do carnaval. O preconceito foi se esvaindo e o tom apocalíptico também. Hoje, não se pode mais falar em descaso das ciências sociais em relação ao futebol. Basta verificar a quantidade de grupos de trabalho sobre este esporte nos congressos científicos da área de ciências sociais e humanas espalhados pelo país. Além do número expressivo de livros, capítulos de livros e artigos em periódicos acadêmicos que tratam do tema.

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