Da Idolatria ao racismo: como o preconceito se disfarça de decepção

Em seu artigo “Foot-ball mulato”, Gilberto Freyre destaca as qualidades individuais dos jogadores negros, propondo que eles seriam influenciados por uma dança dionisíaca, responsável por uma forma de jogo única, mais coreografada e improvisada, inspirada pela capoeira, um patrimônio que estava no cerne da negritude brasileira. Essas qualidades seriam responsáveis por destacar a figura do indivíduo negro no futebol e por dar a ele uma espécie de vantagem contra os adversários, que, sem essas características, estariam prejudicados. Pensando nessa observação, a questão é: até que ponto essas “características” integram o jogador negro enquanto cidadão na sociedade brasileira?

Bom, em 1950, no Brasil, era realizada a quarta edição da Copa do Mundo. A seleção brasileira, anfitriã do evento, era a favorita para ganhar o torneio da FIFA, devido ao seu grande elenco composto por Bigode, Ademir de Menezes, Juvenal, Nilton Santos e pelo goleiro Barbosa. Com bons resultados na competição, o time conseguiu chegar à final do torneio no Maracanã, disputada contra a seleção uruguaia de Ghiggia e Obdulio Varela.

O estádio estava lotado, com quase 180 mil telespectadores ansiosos para ver o Brasil ser campeão do mundo; contudo, para desagrado da torcida brasileira, Ghiggia fez um gol de desempate no segundo tempo, conquistando o título para o Uruguai com uma vitória de 2 a 1. Além de dar ao Brasil um inédito, ainda que melancólico, segundo lugar, essa competição também nos ofereceu uma análise muito interessante acerca da visão sobre a negritude no futebol brasileiro

Após a derrota, um jogador da seleção brasileira foi alvo principal de críticas e de acusações da torcida canarinho. Não existia mais um time, e sim um culpado, um carrasco, um homem responsável pela desgraça de toda uma nação: o goleiro Moacir Barbosa. Enquanto Barbosa fazia defesas mirabolantes e difíceis, a torcida demonstrava toda a sua devoção e admiração por ele. O goleiro era um ídolo do povo brasileiro: ninguém podia negar seu talento individual nem o seu lado dionisíaco.

Fonte: Terceiro Tempo (UOL)

No entanto, esse lado dionisíaco também traz um fardo muito grande: o jogador que detém habilidades individuais ajuda a todos e favorece o time, mas, quando esse mesmo jogador falha, ele falha e sofre sozinho. E, geralmente, o sujeito detentor dessas características e que é acusado sem pudor é o indivíduo negro, visto como uma espécie de animal exótico, do qual se pode esperar tudo, pois, ainda que admirável em alguns momentos, é incerto e não se pode confiar

Por isso, quando Barbosa leva o fatídico gol contra o Uruguai, mesmo já tendo feito outras inúmeras defesas brilhantes, a sua carreira e a sua integridade pessoal foram postas à prova; é como se ele tivesse até então assumido um comportamento de fachada e, a partir do momento em que errou, a partir do momento em que a bola de Ghiggia entrou na rede do Maracanã, o goleiro mostrou a sua verdadeira face e a máscara de bom jogador de Barbosa caiu. Essa ideia tem uma forte relação com a análise de Irving Goffman sobre o indivíduo desacreditado e o indivíduo desacreditável: enquanto o primeiro já é estigmatizado desde o primeiro contato com outrem, o segundo não possui um atributo estigmatizante aparente, mas que eventualmente pode ser “revelado”. No caso de Barbosa, ele se torna “desacreditável” quando a cor de sua pele passa a ser um elemento definidor de sua qualidade enquanto goleiro. 

Além de Barbosa, outros jogadores negros daquela equipe, como Juvenal e Bigode, também sofreram com atos racistas e acusatórios após a derrota. Era como se tivesse faltado aos jogadores negros espírito coletivo, característica essencialmente apolínia e que seria decisiva para a vitória. Com isso, além de sofrerem pela derrota dentro de campo, esses jogadores também sofriam fora dele, devido simplesmente a sua origem étnico-racial.

Mais recentemente, outro caso para pensarmos a negritude no futebol foi a final da Eurocopa de 2021, disputada entre Inglaterra e Itália, no estádio de Wembley. A final do campeonato chegou à disputa de pênaltis, terminando em 3 a 2 para a Itália, que se consagrou campeã.  Na seleção inglesa, foram escolhidos três jogadores negros para bater os pênaltis; entre eles, estavam Marcus Rashford, Bukayo Saka e Jadon Sancho. Infelizmente, nenhum dos três jogadores converteu a cobrança.

Como esperado, a reação da torcida inglesa foi hostil e extremamente injusta, atribuindo, sem pudor, a culpa aos três jogadores. Marcus Rashford foi responsável por realizar em um projeto contra a fome no Reino Unido em 2020, em meio à pandemia da COVID-19, ajudando inúmeras famílias e suprindo a negligência do governo nessa questão. Entretanto, isso não foi levado em consideração pela torcida na hora de avaliar o caráter do jogador, posto que, a partir do momento em que Rashford errou um pênalti, prejudicando a equipe, ele se tornou uma figura desprezível. Essa situação se assemelha muito ao tratamento desprezível e racista sofrido por Barbosa, Bigode e Juvenal, evidenciando que o racismo após a derrota já se tornou algo corriqueiro no mundo futebolístico.

Ao analisar essa questão, nota-se que, talvez, seja o momento de eliminar “Dionísios” e “Apolos” no futebol para que, no lugar deles, tenhamos times que joguem juntos e percam juntos e não indivíduos que sofram devido à sua origem étnica racial.

Referências:

FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário de Pernambuco, Recife, 17 jun. 1938, p. 4.

MUYLAERT, Roberto. Barbosa: Um gol silencia o Brasil. Editora SESI-SP; 1ª edição, 12 novembro 2018.


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