Duas partidas especiais: como Bangu e Brasil de Pelotas chegaram à semifinal impensável de 1985

Em julho de 1985, duas partidas de futebol deram aspecto bizarro ao Campeonato Brasileiro daquele ano. A primeira partida foi disputada em 18 de julho, na cidade de Pelotas. A outra ocorreu três dias depois, em 21 de julho, na cidade de Porto Alegre. No dia 18, enfrentaram-se Brasil de Pelotas e Flamengo. No dia 21, foi a vez de Internacional contra Bangu.

Ninguém imaginava que dois clubes pequenos, um de subúrbio e outro do interior, pudessem chegar à fase semifinal. Depois daquelas duas partidas, o inimaginável tornou-se realidade. E isso faz daquele campeonato um dos mais interessantes da história do futebol brasileiro.

A primeira partida (dia 18): Brasil de Pelotas x Flamengo

O Flamengo, naquele mês de julho de 1985, estava em estado de euforia. Zico, o maior ídolo da história do clube, havia voltado ao clube após passar dois anos no Udinese, da Itália.

O clube disputava a terceira fase da Taça de Ouro (nome dado ao Campeonato Brasileiro daquele ano) e, no dia 14 de julho, venceu o Bahia no Maracanã por 3 a 0, com um gol de Zico. Era o seu gol de número 691. A revista Placar registrou:

Na volta do craque, que chega perto do 700º gol, o Fla reencontra o antigo fascínio (Placar, n. 791).

A mesma revista, naquela mesma edição, referiu-se assim ao Brasil de Pelotas: “Uma zebra rubro-negra?” (Placar, n. 791).

A pergunta era pertinente. Apenas o Brasil poderia superar o Flamengo no grupo F da terceira fase. Caso acontecesse, desclassificaria o clube carioca e passaria à semifinal.
Seria, realmente, uma zebra das mais impressionantes.

Depois de vencer o Bahia, o Flamengo viajou para o sul do país onde enfrentaria justamente o Brasil de Pelotas na penúltima rodada do grupo F. O clube do Rio de Janeiro estava um ponto à frente do adversário.

Um dado mostra bem a distância que havia entre o gigante e a zebra naquela disputa. A folha salarial do Brasil de Pelotas totalizava 70 milhões de cruzeiros. Menos do que ganhava apenas Zico (75 milhões).

O Flamengo era o favorito, claro. Mas no jogo do dia 18 esse favoritismo se dissipou no ar. O Brasil se defendeu bem, neutralizou Zico e, quando teve a chance de marcar gols, não desperdiçou. Venceu por 2 a 0.

“Flamengo perde de 2 a 0 e está quase eliminado”, noticiou o Jornal do Brasil no dia seguinte. O jornal também falou da euforia dos torcedores do Brasil: “Toda a cidade de Pelotas vibrou e festejou intensamente a vitória” (Jornal do Brasil, 19.07.1985).

No dia seguinte, os torcedores do Brasil faziam graça pelas ruas de Pelotas:

“Rumo a Tóquio?”, saudava um. “Rumo a Tóquio”, respondia o outro (Placar, n. 792).

Aquela vitória foi decisiva. O Brasil de Pelotas passou a liderar o grupo F e lhe faltava apenas mais uma partida. Bastava preservar a sua posição. O jogo seguinte seria em Salvador contra o Bahia, um time desclassificado e que estava em último lugar no grupo.

Depois do jogo do dia 18, o Flamengo ainda nutria esperanças de se classificar. Zico, logo após a derrota em Pelotas, disse a um jornalista TV RBS: “Eu acho que se hoje tava tudo errado, quem sabe domingo as coisas não podem virar totalmente favoráveis ao Flamengo?”.

O Flamengo precisava vencer o Ceará no Maracanã e torcer por uma derrota ou empate do Brasil no jogo contra o Bahia. Antes da partida no Maracanã, no vestiário do Flamengo havia “a impressão de total confiança” e “esperava-se goleada” (Placar, n. 792).

O Flamengo empatou em 2 a 2 com o Ceará. O Brasil de Pelotas, por sua vez, venceu o Bahia em Salvador. E assim o pequeno clube do interior do Rio Grande do Sul chegou à semifinal do campeonato.

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Brasil de Pelotas X Flamengo (fonte: YouTube).

A segunda partida (dia 21): Internacional x Bangu

No grupo H da terceira fase, Internacional e Bangu chegaram à última rodada invictos. O Bangu era considerado um clube pequeno. Havia sido campeão carioca apenas duas vezes (em 1933 e em 1966). No Campeonato Brasileiro, seu melhor desempenho o levara às quartas-de-final em 1982, sendo desclassificado nessa fase pelo Corinthians. Já o Internacional havia sido campeão nacional em 1975, 1976 e 1979.

Naquela rodada final do grupo, os dois times fariam uma partida decisiva no dia 21 de julho. Havia uma pequena vantagem para o Bangu, que tinha 8 pontos, enquanto o Internacional tinha 7. Quem vencesse a partida, passaria à semifinal. Em caso de empate, o classificado seria o Bangu.

O Bangu estava há 25 jogos sem perder. Era uma das surpresas do campeonato. Seu patrono, Castor de Andrade, era um bicheiro conhecido e poderoso. Estava convicto de que seria campeão brasileiro e dizia isso abertamente.

O clube de Porto Alegre também estava confiante. Seus atletas tinham certeza de que, na partida decisiva, teriam o apoio de uma “imensa torcida” no Estádio Beira-Rio. O centroavante Marcelo disse à imprensa que o ataque do time havia desencantado e que já estava superada a “síndrome dos gols perdidos”. E disse mais: “O toque de bola, que é o forte do Bangu, não vai ser aplicado contra nós” (Jornal do Brasil, 21.07.1985).

Enfrentar o Internacional no Estádio Beira-Rio é dificílimo. Ainda mais para um clube pequeno. Mas o Bangu não se intimidou. Jogou bem, venceu por 2 a 1 e se classificou. Após o jogo, Moisés, o técnico do Bangu, desabafou: “Veja o Inter, posou de favorito e se quebrou, mesmo porque os favoritos éramos nós, que liderávamos a tabela” (Placar, n. 792).

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Time do Bangu com o patrono Castor de Andrade (fonte: site Trivela).

A semifinal impensável

A semifinal dos favoritos seria Flamengo X Internacional. Dois clubes que já haviam sido campeões brasileiros seis vezes.

Mas, naquela segunda-feira, dia 22 de julho de 1985, o país amanheceu com uma semifinal impensável no Campeonato Brasileiro: Brasil de Pelotas X Bangu. Um clube que nunca havia sido campeão estadual e outro que era tratado como o quinto ou o sexto melhor da sua cidade.

Quem imaginou que isso pudesse acontecer? Bangu e Brasil de Pelotas fazem as semifinais da Taça [de Ouro] e um deles já está garantido na próxima Libertadores (Placar, n. 792).

Aquele campeonato já podia ser considerado único. Esdrúxulo.

Alguns chegaram a dizer que aquilo já era resultado da Nova República, o novo regime político do país que iria transformar a nação por inteiro.

O Atlético Mineiro foi o último favorito a cair. Na semifinal, foi desclassificado pelo Coritiba, que tornou-se o primeiro clube paranaense a chegar em uma final do Campeonato Brasileiro.

Na outra semifinal (a impensável), o Bangu venceu o Brasil de Pelotas duas vezes: 1 a 0 em Porto Alegre e 3 a 1 no Rio de Janeiro.

A história da final é mais conhecida. Foi disputada em jogo único, no Maracanã. Uma partida emocionante. Terminou empatada em 1 a 1. Na disputa por pênaltis, o Coritiba venceu por 6 a 5.

Uma parte da imprensa se mostrou insatisfeita com aquela exótica semifinal. A final entre Bangu e Coritiba também não foi muito bem vista. Alguns jornalistas e comentaristas achavam péssimo que os grandes clubes fizessem enormes investimentos e depois fossem desclassificados em razão de apenas uma ou duas derrotas (isoladas e acidentais). Defendiam a adoção de um modelo que dificultasse ao máximo (e até evitasse) esses “acidentes”. Um modelo que desse maior garantia aos grandes investimentos. O interessante é que essa argumentação pró-investimentos (pró-capital) partia de jornalistas e comentaristas que se consideravam de “esquerda”.

Os dirigentes dos grandes clubes, obviamente, concordavam com aquela argumentação. E resolveram agir dois anos depois. Em 1987, houve o grande levante do chamado Clube dos Treze em defesa de um novo formato para o Campeonato Brasileiro e de um novo modelo geral para o futebol brasileiro. Modelo que se consolidou ao longo dos anos seguintes.

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