Estou cheio da má fama da técnica e dos pedagogos anti-tecnicistas.

Richard Sennett, em um capítulo central de sua obra O Artífice, creio que a última traduzida, parte da constatação de que a técnica goza de má fama, mas, revida, afirmando que para seus possuidores ela favorece a expressão, ou seja, ela libera,  mesmo quando resulta de um longo processo, que calcula próximo a dez anos, de investimento em disciplina, esforço, sofrimento, repetição, rotina e treinamento. Mais ainda, creio que afirma que do gesto técnico gera-se a cultura. O prazer do gesto tecnicamente executado, e cujo produto é reconhecido como expressão de perfeição, arte ou qualidade, resulta de longos anos de dedicação. Esta ideia parece ser oposta aos desejos de uma suposta cultura hedonista que procura o prazer imediato, fácil e de baixo custo de investimento pessoal.

O campo das ideias pedagógicas aparece como fértil na geração de propostas para facilitar a aprendizagem; realizar um processo educativo prazeroso para os educandos e que operaria a partir de um desempenho artístico, animador e sedutor dos mestres. Ou seja, não se trataria apenas de dizer (verbalmente ou por escrito) e mostrar o como se faz. Tratar-se-ia de facilitar (um lugar comum da publicidade que vende produtos facilitadores das tarefas), animar (transmitindo interesse e energia ao aprendiz) e seduzir (criando um foco de desejo). A pedagogia que deveria dominar na escola teria que contar com esses atributos. Isto torna o educador um ser especial, raro, e perseguido por altas exigências de desempenho expressivo. Os pedagogos jamais se interrogam sobre as reações a exigências tão altas, de fato, se aparecem como inatingíveis, elas podem conduzir à desistência no ensinar. Todavia, as técnicas a serem desenvolvidas em cada docente, para atingir esses objetivos, não são formuladas nem transmitidas no dizer e no mostrar.

O contrário parece ocorrer no campo do esporte. Disciplina, repetição, rotina, sacrifício são termos chaves para estimular o atleta na boca dos treinadores. Nas entrevistas, os atletas batem sempre na disposição para superar os esforços e o sofrimento, no valor da disciplina e da repetição. O caminho da formação técnica não parece ser aliado do hedonismo dominante  no seu sentido mais corriqueiro.

Um famoso neurologista indiano, chamado de “Rama” pelos conhecidos, dada sua impossibilidade em lembrar as consoantes de seu sobrenome, afirmou que o atleta constrói um zumbi interior que atua de forma tácita, ou seja, faz até sem poder explicar o como faz.

O atleta do esporte coletivo, e especialmente do futebol, parece que demanda três tipos de treinamento: o físico, o técnico e o táctico.

O treino físico objetiva ao desenvolvimento das funções do corpo; força, resistência, elasticidade e coordenação.

No treino tático, as funções gerais sofrem um profundo processo de adaptação à especificidade do esporte praticado. No caso do futebol se salienta, entre outros fundamentos, a condução da bola, o lançamento, o uso da cabeça (força e direção) o chute, o drible… Bom, o leitor pode continuar a lista com seu saber sobre o esporte (todo brasileiro entende de futebol e de samba). Entretanto, podemos supor que, no futebol, pelas suas características, a relação entre olho, bola e pé é determinante. Cada esporte especifica o triângulo dessas relações que, por exemplo, é diferente no basquetebol e no tênis.

No treino técnico o cérebro se desenvolve em torno dessas relações.

Zagueiro Roberto Alfredo Perfumo

Aqui vai uma lembrança. Em um bar de Buenos Aires (esquina de Coronel Díaz e Santa Fé) Perfumo, um ex grande defensor (jogou no Cruzeiro e na seleção argentina na década de 1970) e excelente conversador, comentava, a Ronaldo Helal e a mim, sobre suas dificuldades em marcar Pelé, pois, com grande domínio lateral duplo, ele podia sair por qualquer lado. Adivinhar não era fácil! Esta abertura técnica de possibilidades deixava, na época dos confrontos, complicava Perfumo e o deixava tenso. As suas eram palavras de admiração e de respeito por esse artista da bola que foi Pelé. Artista fundado em um domínio técnico superior, em uma imensa capacidade expressiva a partir do domínio técnico. Observe-se que técnicos e jornalistas brasileiros por vezes afirmam a superioridade de Pelé sobre Maradona pelo controle técnico de ambos os lados do corpo. Maradona, embora genial, estaria reduzido por apenas dominar tecnicamente um lado do corpo.

O terceiro nível é o tático onde o domínio técnico está a serviço do esquema de jogo, da relação com os outros e da cooperação. Enquanto o zumbi interior controla a bola, ou o corpo vai à sua direção, o olhar mapeia o campo e as possibilidades experimentadas e repetidas no treino táctico. Isso que, por vezes, se denomina de jogada ensaiada. Contudo, os artistas podem ir além do ensaio e, então, criar relações não praticadas, a partir do conhecimento tácito, desenvolvido no treinamento e transformado em zumbi interior. Emerge então a criação, a expressividade, a arte e, talvez, o lado da cultura que pode ir além da repetição do conhecimento explícito na tradição.

No filme ‘Fama’, um aluno de dança pede a sua professora que lhe dê uma carta de apresentação para uma famosa academia americana. Ela lhe responde que não será possível, pois ele não poderá nunca ser um artista no nível exigido pelas grandes companhias. Mas, afirma, ele será um excelente professor de dança, pois seu treino prolongado lhe permitiu um domínio técnico significativo. Ao final do filme ele diz –“Vou ser o melhor professor de dança do mundo”. Exageros à parte se, por um lado, a fala da professora pareceria diminuir o fato dele se tornar um professor; por outro, nos faz pensar que se os artistas geniais nem sempre podem ser bons técnicos (pois devem saber dizer e mostrar) os bons professores precisam de anos de aprendizagem técnica para se tornarem realmente bons professores, sobretudo, se conseguirem situar o domínio técnico correto no campo da tática, enquanto esquema posto em ação para atingir os objetivos do jogo do ensino-aprendizagem.

One thought on “Estou cheio da má fama da técnica e dos pedagogos anti-tecnicistas.

  1. Tocastes em dois pontos fundamentais.

    1. Professores demoram longos anos para serem formados, e, embora indispensáveis à sociedade, ela desvaloriza a função, remunera mal, e afasta muitos candidatos. O sistema de ensino vem sendo desmanchado, e as circunstâncias sugerem que seja deliberado, por gente interessada nisto: http://ning.it/n6hzNd,

    2. Qualidade resulta de longos anos de dedicação, oposta à acultura da superficialidade que assola o país, desejos de uma suposta cultura hedonista que procura o prazer imediato, fácil e de baixo custo de investimento pessoal… Muita gente boa está se aglutinando em torno da idéia de ACORDAR desse torpor…
    Considere-se convocado a participar!
    O mais interessante e extraordinário na amizade é que propicia a troca de idéias:
    Quanto as doamos, desinteressadamente, abre espaço, em nossa consciência, permitindo crescerem novas idéias!
    Mais do que uma pretensão em rumo à politização da nossa sociedade, isto é um chamado para deixarmos de sermos idiotas:
    Acordar: Vamos, hoje, começar a construir 1MMM = UM Mundo Muito Melhor?
    “Em tempos passados, qualquer “movimento” cheirava a delinquencia. Hoje, é o contrário: Qualquer “falta de movimento” serve para manter a delinquencia (sistêmica e institucionalizada).” Como é o exemplo do sistema de ensino: http://ning.it/n6hzNd/

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