Eu sou o 8!

Sobre possibilidades e impossibilidades de escolher um número para jogar futebol

A barba grisalha, aumentada toda vez que é aparada e os fios de cabelos brancos cada vez mais visíveis poderiam ser uma única via de visualização de que o número de aniversários tem se somado mais rápido do que poderia ter imaginado em qualquer circunstância. Muito mais do que aparentar pela coloração de pelos, a repetição de aniversário também gera uma série de comportamentos específicos. Comportamentos que na infância e juventude foram alvo de muita queixam quando feito pelos homens de cabelos grisalhos ou mulheres mais velhas que quase sempre queriam ensinar aos jovens aquilo que pensávamos conhecer.

Um desses comportamentos remete ao saudosismo contemplado na expressão “meu tempo”. Por mais que esteja absolutamente convicto de que o meu tempo é agora, também me autorizo a contar que no “meu tempo” algumas coisas eram diferentes. No meu tempo a escalação de um time de futebol no Brasil ia do 1 ao 11, do goleiro ao ponta esquerda (tendo sido mais fortemente introduzido ao futebol na Copa do Munda da Itália de 1990, o ponta esquerda já era uma figura mais fortemente associada ao “antigamente”, mas mantinha seu valor simbólico).

 

As escalações eram um tanto mais simples. O número 1 era o goleiro. Sendo torcedor do Grêmio cheguei a pensar que o número 1 era exclusivamente do Darlei, conquanto fizesse uma ou outra concessão para o Taffarel na seleção brasileira. Nas laterais tínhamos o 2, bem representado por Jorginho, Cafu e, o mais maravilhoso para os gremistas, Arce, na direita, e o 6, na esquerda. Apesar de Júnior nos anos 1980 – meu primeiro ídolo que não jogou no Grêmio –, entendia que esse era o lugar dos canhotos Branco, Leonardo, Roberto Carlos e Roger Machado). A defesa possuía um miolo de zaga bem composto pelos número 3, quase sempre mais associado a um jogador mais viril como Paulão e Rivarola no Grêmio ou Célio Silva no Internacional, e 4, se possível canhoto, mas para sempre uma liderança na defesa e com boa saída de bola. Outra vez o gremista lembrará dos destros Adílson Batista e do genial Mauro Galvão, além do não gremista, mas maior zagueiro baixo dos anos 1990, Carlos Gamarra.

O meio de campo iniciava com o 5. Esse era o protetor da defesa. Na variação para um esquema com três zagueiros, o número do terceiro zagueiro era sempre 5. No Grêmio os protetores foram Pingo e Dinho, na seleção o espetacular Mauro Silva e me parece que cabe uma lembrança a Capitão, da Portuguesa – o que jogou no Grêmio em final de carreira já não era tudo isso. Ânderson Polga foi o melhor exemplo de 5 como terceiro zagueiro. Eu peguei a transição do 8 de meia-direita para segundo volante. Apesar do Dunga na seleção, meu 8 favorito foi o Luiz Carlos Goiano no Grêmio – marcava muito e fazia gols de falta. O 10 ainda variava um tanto. Ele podia ser meia-esquerda, no melhor estilo Maradona, Zinho ou Carlos Miguel, um meia armador canhoto, como Alex, Djalminha ou Ricardinho, um meia-atacante, tal qual Pelé, Zico, Rivaldo ou Ronaldinho Gaúcho, ou, mesmo, o antigo meia-direita que não podia mais vestir a camisa 8. O dez era tão protagonista que, mesmo que o 10 campeão do mundo em 1994 fosse reserva, em todas as camisetas era esse número que aparecia, mesmo que para os gremistas os números 7 e 16 fossem mais importantes.

Começarei a escalação numérica dos atacantes pelo último, o 11 ponta-esquerda, talvez o último que tenha visto na seleção tenha sido o Elivélton, que era reserva no São Paulo. Essa escolha não é gratuita e tampouco uma homenagem para Éverton Cebolinha. Esse é o atacante transformado em quarto homem de meio de campo fechando a segunda linha. Alguns dos meia-esquerda citados no parágrafo anterior jogaram como 11 (Romário ficará para mais adiante). O 7 era sem dúvida o ponta-direita, mesmo que os pontas não existissem mais e fossem quando muito um segundo atacante. Bebeto me parece o melhor exemplo. Paulo César Tinga que migrou de um atacante mediano para um dos melhores segundos-volante que vi jogar manteve sua camisa 7. No Grêmio, consagrada pelos pontas-direitas Renato Portaluppi (ou Gaúcho para os brasileiros) e Paulo Nunes, a 7 ocupa o protagonismo do 10 o que autoriza que Luan tenha sido o rei da América como meia-atacante com a 7 e não com as 10 as suas costas. Por fim o 9 “o centroavante, o mais importante” consagrado com Ronaldo Fenômeno, Careca e, também, Jael – o cruel! Como prometido, Romário, o maior de todos os 9, jogava com a 11. Na minha memória infantil esse é o primeiro número fixo. O 9 não usava a 9, mas a 11 e, obviamente, utilizando o critério mais científico existente no futebol, a superstição.

Durante o Campeonato Brasileiro de 2008, meu Grêmio chegou a liderar o torneio com 11 pontos a mais do que o São Paulo. Apesar de nosso excelente desempenho com 1 Victor, 3 Léo, 4 Pereira ou Jean, 5 Réver (terceiro zagueiro), 2 Paulo Sérgio, 8 Rafael Carioca, 11 William Magrão (o número do ponta-esquerda também servia para um segundo volante), 10 Tcheco, 6 Hélder (ou Anderson Pico), 7 Perea e 9 Marcel, o Grêmio resolveu adotar numeração fixa. Neófitos poderão me dizer que uma coisa não tem relação com a outra. Quando escrevo essas linhas concordo, mas quando perdi o campeonato não tenho essa mesma convicção.

A numeração fixa permitiu números diferentes. Meu lateral direito titular é o 6 e o esquerdo é o 12 (todo mundo sabe que 12 é o número do goleiro reserva). Meu volante utiliza a 14 (e o Arthurzinho, aquele maravilhoso, usava a 29). O camisa 10 do Grêmio atualmente é o 21 e o meu camisa 9 se nega a jogar enfiado entre os zagueiros como é obrigação de todo camisa 9. O atacante de lado veste a 23. O herói da retomada de títulos do Grêmio era o 32. Nossa camisa 10 ficou 2 anos machucada com o clássico meia armador Douglas e agora é utilizada pelo centroavante, também machucado, Felipe Vizeu.

A numeração fixa deu oportunidade, também, para números esquecidos ou pouco prestigiados. Na Libertadores é uma tradição. Jardel consagrou-se no Grêmio com a 16. Fernandinho fez gol em final com a 21, assim como Cícero já havia marcado com a 27. 47, 88 e 99 também passaram a ser visualizados em uma equipe com apenas 11 jogadores.

Todo esse preâmbulo, com cara de texto completo, foi para falar de um número que segue proibido, o 24. No início do ano fui convidado a opinar sobre a inexistência de jogadores com o número 24 nas numerações fixas dos clubes divulgada naquele momento da temporada. Alguns dirão que é somente um número e estarão corretos. Sendo somente um número, por que não pode ser utilizado? Nesse cenário de polarização política, 13 e 17 continuam aparecendo nos uniformes sem restrições. Os clubes que participam das competições da Conmebol precisam eleger um 24 para não ficarem com um jogador a menos, uma vez que a inscrição é feita por números corridos do 1 ao 30. Ingenuamente pensei que isso resolveria a questão, mesmo conhecendo a estratégia de dar o 24 para um terceiro goleiro ou para um jogador estrangeiro, quase sempre reserva. Na cultura popular brasileira, o 24 é associado ao veado no jogo do bicho e o veado é o adjetivo do homossexual nesse mesmo sentido comum. Apesar da inscrição nas competições sul-americanas, fui convidado, durante o mês de setembro a opinar novamente sobre o mesmo assunto uma vez que entre todos os times das séries A e B, existe somente um 24, justamente o terceiro goleiro Breno, do Grêmio.

Como os jogadores, além de suas qualidades esportivas precisam representar um time, que representa um conjunto de torcedores, ainda parece necessário evitar o risco de ser contaminado com qualquer característica que coloque a extremamente frágil masculinidade dessas comunidades de sentimento em risco. Para não parecer tudo tão feio, as reportagens mostraram que em 2012, após a conquista da Libertadores, Cássio, goleiro do Corinthians queria rapidamente se livrar do número 24, após ser ironicamente provocado por um repórter. O goleiro Cássio nunca chegou a jogar com a 1 do Corinthians. Esse ano, porém, o goleiro Breno afirmou que esse número o marcará para sempre por ter sido o número de sua estreia em um Gre-Nal na Arena em que vencemos por 1 a 0.

Quando criança eu gostava da camiseta número 8. Eu podia jogar de frente e precisaria marcar, mas não tanto quanto o 5. Além disso, a 10 não me competia porque não tinha as qualidades necessárias. Esse texto não é para ser nostálgico. Ao contrário, a ideia é provocar e sugerir que nessa multiplicidade numérica todos os números tenham chance de aparecer as costas porque são simplesmente um número ou porque possam autorizar sujeitos a usarem esse pequeno espaço como um passo curto de luta política e afirmativa.

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