Humano, demasiado humano

Há já algum tempo as mesas de bar passaram a abarcar em sua fauna dois novos tipos antagônicos: os críticos e entusiastas do VAR – sigla em inglês para Video Assistant Referee, também conhecido em bom português como árbitro de vídeo –, novidade que alterou a dinâmica do futebol como nenhuma jamais o fizera.

Pênaltis marcados ou não em campo e o silêncio do VAR | Blogs - ESPN
Fonte: ESPN.

Em meio a uma época pautada pelo ethos polarizador das redes sociais, o debate entre tais figuras geralmente gravita ao redor de um par de interpretações dicotômicas sobre a natureza mesma do esporte bretão e sua (des)necessária adequação ao horizonte tecnológico vigente. De um lado, encontramos aqueles apaixonadamente avessos à intervenção externa ante o que acontece no interior das quatro linhas, espaço assumido então como um universo encerrado em si mesmo durante o acontecimento da partida. Segundo essa perspectiva, a beleza do jogo residiria justamente no fato de ele não trazer intrinsecamente consigo um ideal imaculável de justiça, de modo que os eventos que se desenrolam em campo se converteriam em fecunda metáfora de nossa existência, com seus inexoráveis dramas e reviravoltas. Os caprichosos rumos da bola prescindiriam, pois, de quaisquer correções exógenas. Não raro, o raciocínio apela aqui para casos sedutores: afinal, quão menos graciosa seria a história ludopédica sem o terceiro gol inglês na final da Copa do Mundo de 1966, oficialmente convertido por Geoff Hurst (contrariando a presumida possibilidade de a bola não ter cruzado por completo a linha fatal), e, acima de todas, se não houvesse La Mano de Dios, inventiva solução encontrada num átimo por Diego Armando Maradona para dar início à vingança alviceleste contra os britânicos na Copa do Mundo de 1986, após o trauma infligido ao espírito de nossos vizinhos pela derrota militar nas Malvinas – selada logo em seguida com a maior dentre todas as jogadas individuais.

Sintetizando essa primeira posição em uma espécie de provocação rodrigueana, teríamos o seguinte: o futebol deveria mesmo abdicar de sua liberdade poética, ainda que sob o risco de cercear a potencialidade do manancial que permitiu a um mortal como Maradona enfim transmutar-se em mito perene? A indagação formulada pode até soar bonita, mas a muitos não convence: mesmo que composto por fãs do Pibe, um segundo grupo não compreende as razões pelas quais logo o mais popular dos esportes, com suas cifras e investimentos incalculáveis ao dispor, deveria voluntariamente optar pela obsolescência em pleno século XXI, quando diversas modalidades garantem sua credibilidade ao incorporar tecnologias passíveis de corrigir eventuais equívocos em suas competições. Ora, uma falha humana ajudar a decidir uma partida de Copa do Mundo na distante década de 1960, eternizada por filmagens ainda em preto e branco, seria uma coisa até compreensível; outra muito distinta seria episódio similar ocorrer na era das múltiplas câmeras e ângulos à mão, capazes de desmoralizar tomadas de decisão incorretas em tempo real. Exemplos anedóticos em favor da tese também abundam: que o diga Frank Lampard, cuja passagem por sua seleção ficou marcada pelo gol flagrantemente legítimo ignorado nas oitavas de final de uma já moderna edição de Copa do Mundo, em 2010 (ironias do destino: contra a mesma Alemanha vitimada por seus predecessores em Wembley havia quarenta e quatro anos).

Por fim, cumpre lembrar que nesta celeuma cabem observações à margem da bolha algorítmica mais ampla, alertando-nos para problemas, digamos, mais prosaicos: Lucio de Castro, notável jornalista investigativo da Agência Sportlight, lembra-nos que a instituição do VAR, posto que paliativa e apesar dos pesares, tende a servir como um possível sistema de feios e contrapesos (analogamente ao que deveria suceder em regimes democráticos saudáveis – e saudosos) contra as investidas tanto de um mercado de apostas cada vez mais estruturado quanto do submundo da máfia de manipulação de resultados – a propósito, alguém consegue determinar exatamente as fronteiras e zonas de influência entre um e outro…?

Hoje parece consenso que os principais campeonatos deveriam lançar mão da ferramenta desde seus apitos inaugurais até os derradeiros. Recentemente, a Conmebol foi alvo de críticas (não nos diga!) por prever a utilização do VAR apenas a partir das oitavas de final de sua principal copa entre clubes, a Libertadores da América. De todo modo, eis o que ora nos interessa: se errar é humano, o VAR, ao contrário da suposta máquina fria e precisa que muitos pintavam lá atrás, demonstra a cada rodada que também o é. Com efeito, a completa supressão de controvérsias no reino do futebol (tão temida por uns, tão desejada por outros) queda improvável. Recorramos a dois veredictos decretados após consulta ao árbitro de vídeo na última semana, ambos durante as oitavas de final do referido certame latino-americano.

Numa Bombonera reduzida a um estádio qualquer sem a pulsação de sua hinchada devido à pandemia de covid-19, o Boca Juniors recebeu o Atlético-MG e, aos trinta e quatro minutos da etapa inicial, teve um gol de Diego González anulado (não sem muita demora e confusão) graças à revisão levada a termo no visor disponível à linha lateral pelo árbitro de campo, o colombiano Andres Rojas. Após se valer de uma inspeção minuciosa propiciada pelo recurso tecnológico, Rojas assinalou uma falta (anterior ao desfecho da jogada) de Briasco, atacante xeneize, sobre Nathan Silva, configurada por um suposto empurrão nas costas do zagueiro atleticano quando este saltava com o intuito de afastar pelo alto a bola que havia sido alçada na área. Houve acerto? A intensidade do contato sutil teria sido suficiente para deslocar indevidamente o defensor brasileiro? Sucessivas reavaliações talvez não consigam resolver a matéria.

Na Argentina, país em que a cobertura esportiva costuma assumir uma verve passional, o lance foi majoritariamente tratado como um erro patente que prejudicou o clube local; pelas bandas de cá, por seu turno, a cobertura midiática concedeu algum espaço a ressalvas e ponderações. O cenário me parece ambíguo justamente porque aberto à interpretação e, portanto, à boa e velha dimensão humana: creio que não haja VAR apto a encerrar o caso, conquanto possa — e deva — lançar luzes sobre os pormenores da jogada. A Conmebol discorda: Rojas e Derlis Lopes, que assessorava aquele pelo VAR, foram suspensos do quadro da entidade por tempo indeterminado.

Já no confronto de ida entre Cerro Porteño e Fluminense, realizado em Assunção, o que se viu foi negativamente impressionante: não obstante o domínio imposto desde o início pelo time carioca ao adversário, foram os paraguaios quem abriram o placar aos quarenta minutos do primeiro tempo mediante tento do veterano centroavante Boselli. Ou melhor: teriam aberto, não fossem a anulação determinada pelo assistente e sua bizarra chancela por parte dos responsáveis pela análise do vídeo ao indicarem um impedimento que nunca houve. No dia seguinte, a Conmebol divulgou em seu canal no YouTube um vídeo em que podemos acompanhar os diálogos travados entre os profissionais da arbitragem à ocasião: ao traçar linhas imaginárias que levaram em consideração o marcador mais próximo do atacante do Ciclón (em relação ao qual este estaria impedido), a presença de Samuel Xavier, lateral-direito tricolor que habilitava todos os adversários por estar mal posicionado, ainda que distante da disputa no meio da área, foi sumariamente ignorada na parte inferior da imagem. Beneficiada pelo erro – embora nada tenha a ver com isso –, a equipe das Laranjeiras fez jus à sua superioridade no segundo tempo e encaminhou sua provável passagem para as quartas de final, derrotando o oponente fora de casa com uma convincente vitória por 0 x 2. Sem embargo, o Cerro Porteño solicitou, em dura nota à Conmebol, não apenas a expulsão imediata dos árbitros envolvidos na trapalhada, mas a anulação da partida. Enquanto esta medida extrema dificilmente seria adotada, a consequência aos envolvidos na deliberação arbitral foi a mesma imposta à dupla que atuou na Bombonera: o bandeirinha e a equipe de vídeo escalados para o duelo na capital paraguaia foram afastados de suas funções por tempo indeterminado após a confederação assumir publicamente o erro, e passarão por reciclagem enquanto cumprem a penalidade.

Cerro Porteño pede à Conmebol anulação de jogo com Fluminense após erro do  VAR | LANCE!
Fonte: Lance!

Alguém poderia afirmar que imbróglios como os descritos acima só podem ganhar corpo na periferia do capitalismo futebolístico: na Europa, para onde tudo converge, a profissionalização dos árbitros no mais alto nível – e sua consequente capacitação contínua –, além de eliminar as revisões intermináveis (e por vezes indevidas) com as quais infelizmente convivemos na América Latina, acima de tudo impediria que equívocos evidentes prosperassem a ponto de macular confrontos agudos em torneios sediados no Velho Mundo. A estes, a semifinal da última Eurocopa entre Inglaterra e Dinamarca, realizada no mesmo terreno londrino que coroou Hurst por um possível gol fantasma em 1966, pode ter sido um banho de água fria: se é verdade que os anfitriões foram melhores que os nórdicos, também o é que o passaporte para a final, na qual viriam a ser derrotados pela Itália, foi carimbado em virtude de um pênalti para lá de discutível anotado sobre Sterling já na prorrogação – não o vi na hora como não o verei em nenhum replay –, criando ensejo para o gol decisivo de Harry Kane (no rebote da cobrança defendida pelo goleiro Schmeichel). Dito de modo expresso: o VAR veio para ficar – e estou entre aqueles que o saúdam, pois há erros e erros –, mas não será ele a suprimir definitivamente algumas polêmicas que nos animam enquanto torcedores – e estou entre aqueles que, curiosa e simultaneamente, comemoram as limitações inerentes à tecnologia atual. O luxuoso auxílio ainda pode ser aperfeiçoado; os protocolos que o acompanham merecem ser refinados à luz da experiência adquirida; os árbitros devem ser atendidos em suas reivindicações por uma qualificação sistemática (urge que as condições estruturais para tanto sejam fornecidas pelas federações); mas nada disto haverá de implicar a extinção dos debates públicos de botequim por um fator incontornável: a despeito de todo e qualquer cérebro eletrônico, o futebol segue humano, demasiado humano. Que assim permaneça.

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