Internet x imprensa: um jogo paralelo no Mundial de Clubes

Redes sociais recorrem ao jornalismo para criticar cobertura da imprensa.

A final da Copa do Mundo da Fifa 2019, entre Liverpool x Flamengo, expôs uma curiosa, e interessante, disputa de narrativas entre o discurso, quase uníssono da imprensa, e o das mídias sociais. Embora marcado, também, pela (saudável) jocosidade das torcidas, as narrativas fora do campo da imprensa apresentaram um fator que parece indicar uma inversão de papéis. Enquanto, não raro, o discurso que exaltava a participação da agremiação carioca soava clubístico, com direito a contagem regressiva do voo, internautas faziam jornalismo, ocupando papel que deveria ser o da imprensa. Entendida essa prática como a busca de contrapontos, a indicação de contrastes no tratamento dedicado ao Flamengo e a outros clubes brasileiros que participaram do mesmo evento em outras edições e a exposição de contradições importantes – eventualmente constrangedoras – entre a fala de veículos e jornalistas e os fatos.

Para colocar a cobertura em perspectiva, eventualmente, foi necessário recuar no tempo, para tentar mostrar como, já na cobertura da conquista da Libertadores, havia fortes contrastes com a gramática dedicada, por exemplo, ao título do mesmo torneio pelo Vasco, em 1998. Assim, por exemplo, em 23 de julho daquele ano, o jornal O Globo anunciava, sem qualquer ilustração, numa discreta coluna de rodapé de página: “Vasco está na final da Taça Libertadores”. O mesmo jornal, 21 anos depois, manchetou, em cinco colunas: “Goleada histórica põe Fla na final da Libertadores”. A matéria era acompanhada por uma foto, em quatro colunas, do Gabigol celebrando um dos dois gols que marcara na vitória de 5 x 0 sobre o Grêmio. No caso do Vasco, a classificação para a final veio após empatar, na Argentina, em 1 x 1, com o River Plate, a quem vencera por 2 x 1, em São Januário.

O tratamento distinto provoca maior estranheza por tratar-se de dois times do Rio, mesma praça do jornal responsável pelos dois títulos. Talvez por isso, embora a comparação entre as duas edições tenha partido da internet, sua forte repercussão nas mídias sociais acabou reverberando em programas como o “Redação SporTV”, que exibiu a cobertura realizada pelo jornal da mesma empresa do programa. O jornalista André Rizek, que comanda o “Seleção SporTV” – umas das principais mesas esportivas da emissora –, foi ao Twitter para chamar a atenção para a contradição exibida pelo programa, e protestou: “É ultrajante a diferença no tratamento dispensado aos dois clubes, em situações muito parecidas”.

Paulista radicado há alguns no Rio, Rizek, em outras ocasiões, já manifestara seu descontamento com o que considera a assimetria do tratamento da imprensa carioca em relação ao Flamengo e aos outros três times grandes do Rio: Botafogo, Fluminense e Vasco. Nas suas palavras: “Tem a cultura que o Flamengo tem de ser soberano. Para o Flamengo ser soberano, tem de ridicularizar os outros. Os feitos dos outros são menos comemorados, são menos vibrados, menos enaltecidos.”

Glamourização da derrota x Orgulho do torcedor

Apesar do papel relevante que ocupa no jornalismo esportivo do Rio, Rizek, no entanto, parece ser voz quase isolada no questionamento a esse comportamento. Ao menos, esse parece ser o entendimento das vozes que se levantaram nas mídias sociais para se contrapor aos jornalistas que enalteceram o vice-campeonato do Flamengo, em contraposição ao tratamento dispensado a outros clubes em situações semelhantes. Em junho de 2019, quando o  Corinthians foi eliminado pelo Flamengo, nas quartas de final da Copa do Brasil, também por 1 x 0, o portal Terra exaltou a atuação do time paulista, apesar da derrota: “O dia em que o Corinthians ganhou sem ter vencido. No jogaço contra o Flamengo, Timão lava a alma da torcida e traz esperanças de dias melhores”. No Twitter, Mauro Cezar Pereira, da ESPN Brasil, reproduziu o tweet do Terra, mas encabeçado pela crítica: “Glamourização da derrota.”

O mesmo jornalista, no entanto, tuitou sobre a derrota do Flamengo para Liverpool: “Grande partida do Flamengo, com coragem, com a bola e, enquanto tinha gás, chegou a dominar a partida contra um campeão europeu com força máxima”. E decretou: “Vitória justa do Liverpool, atuação digna do Flamengo. Orgulhoso deve ficar o torcedor”. O tweet foi amplamente replicado nas redes sociais, ao lado do texto anterior de Pereira sobre o Corinthians, acrescido, porém, do mesmo cabeçalho anterior: “A glamourização da derrota”.

Fonte: https://www.terra.com.br/

Exemplos equivalentes repetiram-se à profusão nas redes sociais, antes, e, principalmente, após a vitória do Liverpool. Vários comparavam a exaltação ao “melhor vice-campeão sul-americano contra um europeu” ao tratamento desdenhoso destinado ao Vasco, contra o Real Madri, em 1998. Naquela ocasião, o jornal “Extra” titulou: “Flamengo em festa com o vice do Vasco”. Vinte e um anos depois, o mesmo veículo manchetou: “Orgulho do tamanho do mundo”.

No primeiro caso, além de introduzir a comemoração do rival no título, a matéria era ilustrada pela foto de um jogador do Vasco com as mãos na cabeça, expressando dor. No segundo, a fotografia exibia atletas do Flamengo aplaudindo a própria atuação e a torcida. Como é pouco provável que os rivais estivessem tristes com a derrota rubro-negra, os editores do jornal, dificilmente, poderiam se escudar na objetividade para justificar a ausência da jocosidade clubística que abrigara no outro caso. E, como recordam lances editados e exibidos na internet, o time de São Januário fez um jogo muito mais parelho – para muitos, superior – com o rival espanhol, como mostram as inúmeras chances claras de gol. Já o goleiro do Liverpool, Alisson fez uma solitária defesa ao longo dos 120 minutos, entre o tempo regulamentar e a prorrogação.

Ainda que toda a narrativa das mídias sociais exibida nesse episódio tenha em seu DNA a paixão clubística, como mostra a sua forte replicação por torcedores não rubro-negros, ela se distingue da jocosidade das torcidas, também fortemente presente, aí do lado dos rivais e dos torcedores do Flamengo – neste caso, brincando com a clara superioridade do clube em relação aos concorrentes exibida ao longo do ano passado.

Diferentemente desta, cujo principal combustível é a paixão clubística e não tem qualquer compromisso com fatos, apuração, contexto, as críticas jornalísticas deixam o jornalismo esportivo numa posição incômoda. Ao compararem – e comprovarem – como os mesmos veículos e jornalistas agem de formas assimétricas diante de fatos semelhantes quando vivenciados por atores diferentes, elas expõem uma subjetividade, que, ao menos em tese, deveria limitar-se ao universo dos torcedores, em contraponto, à objetividade reivindicada pelo jornalismo.

É sabido – e admitido pelo próprio universo jornalístico – que as editorias de esporte são consideradas espaços mais livres, nos quais a busca pela objetividade pode se dar ao luxo de certo relaxamento dos seus rigores habituais. Mas, justamente, por esse relaxamento, também são um território privilegiado para estudos de caso. Não sobre uma exceção na engrenagem da objetividade jornalística, mas, exatamente, para fornecer uma visão mais transparente do processo que, em outras editorias, é mais velado.

Analogias entre as preferências esportivas exibidas nessas editorias podem ser encontráveis, por exemplo, nas seções de política e economia, mostrando que, se os interesses das empresas podem ser mais explicitados nas primeiras, também comparecem nas outras duas, ainda que de formas menos identificáveis pelo público leigo nesses temas. Eles estão presentes no tratamento distinto destinado a políticos e partidos em temas equivalentes. Como exemplo pouco sutil: o mensalão do PT x o mensalão mineiro – enquanto este envolvesse um partido, o PSDB, e não um estado como um todo.

O mesmo vale, nas páginas de economia, para a cobertura sobre as mudanças na Previdência. No vasto espaço destinado ao tema, o “Jornal Nacional”, principal telejornal do país, não ouviu um só entrevistado contrário à redução dos direitos à aposentadoria. Ou seja, o famoso ouvir os dois lados, um dos cinco procedimentos estratégicos que servem à busca pela objetividade jornalística. Sendo os demais a técnica do lead; o recurso a provas auxiliares; o uso de aspas e a separação de fatos e opinião, o que reforçaria o caráter objetivo e neutro da primeira em contraponto à subjetividade e à editorialização da segunda (TUCHMAN, 1993).

Se no passado, a subjetividade das editorias esportivas contava com maior complacência do público – ou, ao menos, este tinha canais menos estridentes para manifestar divergências – as redes sociais mostram que, quando recorrem à mesma metodologia reivindicada pelo jornalismo, podem produzir contrapontos objetivos às narrativas das empresas que vão muito além da jocosidade das torcidas. A análise desse fenômeno pode ser uma pista e um incentivo para que possa ser estendido às outras editorias.

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989

SOUTO, Sérgio Montero. Imprensa e memória da copa de 50: a glória e a tragédia de Barbosa. Niterói: Dissertação de Mestrado da UFF, 2002.

TUCHMAN, Gaye. “A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas”. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993.

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