Muito românticas as narrativas da imprensa esportiva brasileira, ao descrever a interrupção do sonho das crianças e a perda de esperança em dias melhores, almejados pelas famílias destas crianças.
Muito oportuno e trabalhoso preparar minibiografias das vítimas, procurar o técnico e o clube onde iniciaram o esporte, depoimentos de vizinhos amigos e familiares, sempre com indagações que, na maioria das vezes, só procuram despertar a emoção.
Outro viés é procurar por culpados pelo crime (mais um) entre o descaso do poder público, a afronta de uma dúzia de dirigentes e/ou a omissão do Ministério Público, como se existisse punição exemplar, que dê um basta na sequência de “acidentes”, para este tipo de crime no Brasil.
Crime que a imprensa brasileira trata “inadvertidamente” de “tragédia” ou, mais grave ainda, de “acidente”.
Nada de novo. Este tipo de narrativa é mais comum do que se imagina. Há décadas, que as “tragédias” se repetem, as narrativas se repetem, a caça as bruxas se repete, a impunidade se perpetua e a linha das narrativas da cobertura “jornalística” permanece inalterada seguindo um roteiro de drama televisivo, que lhe proporcione algumas horas de programação e audiência. Afinal o povo curte uma desgraça – sempre a alheia, evidente.

São inúmeros os exemplos: Edifício Andraus, Edifício Joelma, Edifício Andorinha, Boate Kiss, Mariana, Brumadinho …. só para citar alguns e não desviar o objetivo principal deste artigo.
No caso das vítimas do Centro de Treinamento George Helal, mais conhecido como Ninho do Urubu, do Flamengo, deveria ser focado o levantamento das condições a que são submetidas as crianças, reféns de uma indústria impiedosa e inescrupulosa que se alimenta dos sonhos de inocentes, motivados pelo desejo de reconhecimento e fama, de um dia integrar as fileiras do futebol profissional no seu time de coração, que lhes proporcionará uma ascensão social a eles e sua família.

Para os clubes, estas vítimas não passam de meras commodities que num prazo de três a quatro anos – com baixo orçamento de manutenção – renderiam ao clube alguns milhões de euros. Investimento rentável, de fácil extração, normalmente do estrato social mais baixo da sociedade.
Entre 2017 e 2018, o Flamengo obteve lucros fantásticos com esse produto. A título ilustrativo, foram vendidos os seguintes jogadores, formados na base do clube, que ficaram alojados nos mesmos contêineres que pegaram fogo: Felipe Vizeu, Paquetá, Vinicius Junior e Jorge. Adryan e Matheus Savio foram emprestados a clubes europeus (estão na melhor vitrine), para posterior lucro com a venda. Será que esse dinheiro não seria suficiente para acomodar o “estoque” em fase de produção, num lugar mais seguro?

Um país, que não observa o cumprimento das leis que protegem a vida de seus cidadãos e o meio ambiente, não respeita a constituição no que tange aos direitos básicos, como saúde e educação e fica refém do poder econômico. Está impossibilitado moralmente de punir eventuais crimes como os ocorridos recentemente.
Caberia à imprensa, em lugar de explorar a emoção, denunciar a impunidade e investigar todos os atores envolvidos; daria mais ou menos o mesmo trabalho que procurar para entrevistar o primeiro técnico de um garoto do interior do Piauí.