Mais uma gelada, por favor

O Diário Oficial do Estado da Paraíba, em sua edição de 19 de fevereiro de 2020, trouxe a publicação da Lei 11.644, de 11 de fevereiro do mesmo ano, que delibera sobre a “liberação do comércio e do consumo de bebida alcoólica em estádios e arenas no Estado da Paraíba”.

Pela lei, pois, que já está em vigor em todo o território paraibano, seguindo, aliás, exemplos de outros estados brasileiros, a velha – e boa – cerveja nas arquibancadas está regulamentada depois de pouco mais de dez anos de “lei seca”.

Isso não significa, contudo, que o processo é pacífico. Ou livre de conflitos.

Tão logo a lei foi promulgada, o Ministério Público da Paraíba anunciou que vai até o Supremo Tribunal Federal pedir a inconstitucionalidade da lei. E o procurador que encabeça as ações que tratam sobre futebol no MP local chegou a chamar de “idiota” todo aquele que defende a liberação do consumo de bebida alcoólica em jogos de futebol realizados na Paraíba.

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Fonte: Lance!

A alegação é sempre a mesma: “álcool gera violência”.

Ponto final. Fim do debate. Quem discorda, é “idiota”.

O pior, é que muitas vezes a mídia local adota o discurso simplista. Compra o argumento oficial. Dissemina a ideia de que as brigas, os conflitos, os problemas eventuais, são motivados – só e somente só – pela bebida alcoólica. Referenda uma versão que é completamente destituída de análise científica, de observação empírica.

É sobre isso que eu quero falar aqui.

Antes, porém, quero iniciar com uma crítica à própria lei.

O Artigo 1º autoriza exclusivamente “o comércio e o consumo de bebida alcoólica fermentada cujo teor alcoólico não seja superior a 15%”.

Mais específico impossível.

Para mim, pois, fica claro um lobby das grandes cervejarias. Que exclui, por exemplo, a cachaça, extremamente popular na Paraíba e preferida dos torcedores mais pobres, sem condições de pagar tanto pelo consumo da cerveja.

A lei, assim, tem dois problemas graves: (1) beneficia apenas as classes média e alta da sociedade, deixando de lado os pobres; e (2), de certa forma, referenda o discurso do MP da Paraíba e da Polícia Militar de que o álcool é sim o gerador de violência. É como quem diz, em claro tom preconceituoso: “estamos liberando, mas apenas as bebidas mais leves”.

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Fonte: Folha de SP.

Mas, falemos sobre o mérito da questão.

Ao longo de dois anos, durante minha pesquisa de mestrado, acompanhei torcedores do Botafogo-PB. Pela cidade, nos dias de jogos, em viagens pelo Brasil.

E, nas minhas análises antropológicas, identifiquei dois motivos principais para classificar como despropositadas o veto à venda e ao consumo de bebidas alcoólicas em estádios de futebol. Trato, claro, do contexto paraibano, mas me parece que essa realidade pode ser aplicada a outras realidades brasileiras.

Primeiro de tudo é que é um equívoco tremendo, um desconhecimento total da pluralidade existente numa arquibancada, colocar na conta da bebida alcoólica todas as formas de violência, de conflito, de indisposição mesmo de um com o outro no contexto futebolístico.

Fazer isso, afinal, é negar as múltiplas identidades, as distintas formas de torcer, as rivalidades e diferenças que estão postas no ambiente do futebol. Não só entre torcedores de clubes diferentes, mas entre as próprias torcidas de um mesmo clube (sempre pensadas no plural). É colocar na conta da bebida algo que é muito mais complexo, muito mais rico do ponto de vista antropológico, inclusive.

A propósito, fazia mais de dez anos que o consumo de bebida alcoólica estava proibido na Paraíba, e ao longo desse tempo não há absolutamente nenhuma evidência que comprove que a violência diminuiu, que os conflitos ou as diferenças cessaram por causa do veto.

Qualquer análise empírica mais séria, qualquer investigação científica mais cuidadosa, qualquer debate que aceite seguir para além do discurso fácil e do preconceito barato provará que praticamente as mesmas questões existentes em 2008, por exemplo, antes do veto, seguiam existindo em 2019, mais de uma década depois do veto ser instituído.

O debate tem que ser mais embasado. O debate não pode se limitar aos lugares comuns, aos achismos, à criminalização prévia do consumo de bebida alcoólica.

Mas tem um segundo ponto: o veto é completamente ineficaz. Porque, ao menos na Paraíba, ninguém que gosta de beber, de se embriagar, que seja, deixou de fazer isso ao longo desses dez anos.

Se a ideia era a de que com menos álcool haveria menos violência, a medida se tornou completamente inócua.

Foi outro ponto extremamente perceptível em minha pesquisa.

Nenhum torcedor, que gosta de beber, deixou de beber por causa do veto. As torcidas, na verdade, não fizeram mais do que mudar suas dinâmicas. A se readequarem aos novos tempos. Começaram a se reunir mais cedo antes dos jogos, a prolongar suas farras e bebedeiras depois da partida, a atrasar ao máximo a hora de entrar no estádio.

Tudo isso para beber onde era possível. Onde era permitido. Onde era legalizado. Ninguém passou a assistir a jogo sóbrio por mero decreto.

Novas estratégias para driblar uma coercibilidade do Estado. Novas formas e novos lugares de encontros em nome da potência que a bebida proporciona nas sociabilidades dos grupos torcedores.

No fim das contas, a medida, que supunha diminuir a violência nos estádios paraibanos, não a diminuiu e ainda trouxe problemas não previstos pelas autoridades públicas.

Cito dois: encontros de torcedores rivais em bares localizados longe do estádio de futebol, onde o policiamento em regra não está presente; e tumulto na entrada do estádio nos cinco minutos que antecedem o início da partida, visto que os bebedores passaram a atrasar ao máximo a entrada no estádio para seguirem bebendo até o limite do possível. No fim de tudo, eram poucos os portões para tanta gente que queria entrar exatamente no mesmo momento e o tumulto tornava-se inevitável.

Enfim, o Ministério Público da Paraíba, a Polícia Militar, parte da mídia, tantos outros, erram feio ao defender uma postura mais conservadora, uma política mais proibitiva, baseado em puro preconceito, ao invés de se debruçar em estudos sérios que analisam as dinâmicas dos torcedores de futebol.

Afinal, tais dinâmicas são muito mais complexas do que o discurso simplista tenta fazer parecer.

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