Houve um tempo em que a única oportunidade de assistir a um jogo internacional pela TV era no domingo pela manhã, quando a TV Bandeirantes exibia, no Show do Esporte, uma única partida da rodada do Campeonato Italiano. O chamariz para os brasileiros era a eventual participação de ídolos nacionais que, a partir dos anos 1980, começaram a se transferir para o torneio mais competitivo de então. Ídolos como Falcão, Zico, Júnior, Toninho Cerezo, só para citar alguns integrantes do time canarinho de 1982 tinham ido jogar na “bota”.
Não era um mundo globalizado. Nem se sonhava com Internet para meros mortais. Os mundiais eram praticamente a única grande oportunidade de admirar craques de outros países, outras táticas. Não foi à toa que o Carrossel Holandês de Rinus Mitchel pegou a todos de surpresa na Copa da Alemanha, em 1974. Cruyff era um desconhecido para nós que estávamos abaixo da linha do Equador.
Hoje a história é outra. Há uma enorme diversidade de campeonatos disponíveis na TV por assinatura ou nos canais de streaming. Os principais torneios do mundo, com seus milionários investimentos, se tornaram comuns em todos os tipos de tela à nossa disposição. A disputa da UEFA Champions League, no Brasil, dependendo da faixa etária, repercute mais do que o Campeonato Brasileiro, afinal, lá estão os craques que os jovens torcedores aprenderam a admirar.
O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ronaldo Helal, estuda o surgimento e a formação de ídolos e heróis representativos de espetáculos de massa e suas relações com a Indústria Cultural. Em seu artigo “Mídia, Ídolos e heróis do futebol”, disponível no portal da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, ele nos lembra que “um fenômeno de massa não se sustenta sem a presença de ‘estrelas’. São elas que atraem as pessoas aos eventos e transformam-se em um referencial para os fãs”. E é justamente a imagem desses ídolos que ajuda a mover uma poderosa engrenagem de negócios, gerando lucros estratosféricos. De acordo com a Football Money League, da consultoria norte-americana Deloitte, só o Barcelona faturou cerca de 840 milhões de euros na temporada 2018/2019 (algo em torno de 4 bilhões de reais). O argentino (ou já seria catalão?) Lionel Messi, o português Cristiano Ronaldo, o brasileiro Neymar Jr. são os nomes mais representativos desse seleto clã, mas há espaço para muitos outros nos holofotes midiáticos globais.
Este artigo é dedicado justamente a um desses jogadores que, a princípio, integrariam um segundo escalão, mas que em seu país é considerado um rei, ou melhor, um faraó: Mohamed Salah Hamed Mahrous Ghaly, ou simplesmente Mo Salah, como é apelidado na Premier League inglesa, onde atua pelo Liverpool. O atacante de 27 anos é o maior jogador da história do futebol egípcio.

De norte a sul do Nilo, a figura de Salah está presente e nos locais mais inusitados, como uma fachada de salão de barbeiro em Memphis, dando nome a um pequeno barco que transporta turistas na cidade de Aswan ou estampando papiros em uma loja em Giza. Adesivos em carros ou tuk-tuks (espécie de moto-táxi) se vê às centenas. Algo que chama a atenção até mesmo de quem não está habituado com o mundo do futebol.


Durante uma recente viagem ao Egito, perguntei a várias pessoas de lá o que achavam de Mohamed Salah, e os elogios ao jogador foram uma unanimidade, não houve sequer uma queixa, um senão. E o mais curioso de tudo é que, apesar de o ponta ter sido um dos maiores responsáveis por levar o selecionado egípcio ao mundial da Rússia, em 2018, raros eram os elogios que passavam por seu desempenho nas quatro linhas. A maior qualidade de Salah era sempre a ligação com suas origens e a constante preocupação com seus compatriotas.
O nosso guia no Cairo, Abdel Kader El Araby, nasceu na mesma região que o atacante do Liverpool, no delta do Rio Nilo. O entusiasmo para falar de Salah superava as dificuldades que tinha com o “portunhol” que usava para nos explicar as atrações que visitávamos. Orgulhoso, Abdel nos contou que todos os anos o jogador volta ao povoado de Nagrig, na Província de Garbia. Disse que o jogador dispensa qualquer proteção e que se desloca pela cidade como nos tempos em que lá vivia. Nosso guia também fez questão de ressaltar como Salah ajudou e ainda ajuda a região.
As boas ações de Salah viraram lendas numa terra tão acostumada a elas nos últimos cinco mil anos, algumas reais e, outras, frutos da imaginação popular. É fato que Salah mandou construir uma quadra de esportes na escola que ganhou seu nome, em Nagrig, que ajudou a reformar o hospital de Basyoun, onde foram construídas salas de atendimento para recém-nascidos, além da compra de ambulâncias. Também é correto afirmar que faz contribuições mensais para centros comunitários e outras bem mais vultosas, como o repasse de cerca de um milhão e meio de reais para o Tahya Masr Fund, uma instituição que presta atendimento de saúde a 900 mil crianças matriculadas no sistema público de educação do Egito. No entanto, outras supostas atitudes beneficentes acabaram se propagando pelo país sem que fossem de fato tomadas, como, por exemplo, a ajuda que teria dado a milhares de casais que não tinham condições financeiras para se casar ou a construção de uma grande estação de tratamento de água em sua região natal.
A religião muçulmana é baseada em cinco pilares, e um deles é justamente a caridade, ou seja, todo seguidor dos ensinamentos de Alá deve doar um percentual de seus ganhos aos necessitados, mas nenhuma das pessoas com que conversei acredita que o motivo das doações feitas pelo jogador seja religioso, já que Mohamed Salah é muçulmano, como cerca de 90 por cento da população egípcia. Para todas essas pessoas, a caridade praticada por ele é fruto de sua índole, o que o faz ser ainda mais admirado.
Não se pode classificar Mohamed Salah como um jogador engajado, mas seria errado, também, dizer que ao se transferir para o exterior ficou alheio aos graves problemas enfrentados por seu país. Quando atuou pela Fiorentina da Itália, por exemplo, passou a usar a camisa número 74. Esse foi o número de mortes na tragédia do estádio de Port Said que aconteceu no dia primeiro de fevereiro de 2012. Tudo por causa de um confronto entre “ultras” (grupos de torcedores violentos) do time local, o Al-Masry e da equipe do Al-Ahly, do Cairo.

Em 2013, se recusou a apertar a mão de jogadores do time israelense do Maccabi, por discordar da política sionista em relação à Palestina. Outro exemplo da preocupação com assuntos extra campo foi uma doação de dois milhões e meio de libras esterlinas (14 milhões de reais) para o Instituto Nacional do Câncer, que teve parte das instalações atingida por um atentado terrorista em agosto de 2019. Além disso, Salah é o rosto de uma campanha antidrogas no país.
Em um texto para o jornal The New Arab, em maio de 2018, Mohamed El Meshad, jornalista com foco na economia política da mídia, questionou: “Mo Salah é um herói necessário ou um ópio para as massas?”. El Meshad entende que o craque egípcio deveria se manifestar mais em relação a temas do Oriente Médio, como as agressões na Faixa de Gaza, por exemplo. “Dado seu passado, Salah poderia usar seu status de craque mundial e se manifestar, especialmente em um momento em que grupos de defesa pública e ação política independente foram esmagados pelo Estado. Mas certamente é pedir demais a um jogador de futebol de 26 anos que sempre tome a decisão correta sobre o que dizer e o que não dizer, quando falar e quando não falar”.
No artigo citado no começo deste texto, Ronaldo Helal destaca a visão de dois pensadores que muito se encaixa com a imagem que a população egípcia tem de Mohamed Salah: “Edgar Morin (1980) e Joseph Campbell (1995) chamam a atenção para a diferença entre celebridades e heróis. Enquanto os primeiros vivem somente para si, os heróis devem agir para ‘redimir a sociedade’. A saga clássica do herói fala de um ser que parte do mundo cotidiano e se aventura a enfrentar obstáculos intransponíveis, os vence e retorna à casa. Conforme colocou Campbell (1995:36) ‘o herói parte do mundo cotidiano e se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes’”.
Para Mohamed El Meshad, “Salah é um produto do presente que representa um futuro no qual muitos estão desesperados para acreditar, um egípcio bem-sucedido contra todas as probabilidades”. O fato é que o ídolo egípcio conseguiu em meio a uma fase tão difícil, unir o país, ainda que através do futebol. Depois da Primavera Árabe e os violentos protestos na praça Tahrir, cujo nome significa liberdade, o ditador Hosni Mubarak, que estava há 30 anos no poder, foi deposto. Mas a transição para a democracia se mostrou turbulenta e entrou em colapso quando o presidente Mohamed Morsi, democraticamente eleito, foi derrubado pelos militares com apoio popular em 2013. Desde então o Egito está sob o comando do presidente Abdel Fatah al-Sisi, ex-chefe das forças armadas, e vive um regime de severa repressão a qualquer tipo de oposição.

Em junho de 2018, pouco antes da Copa da Rússia, o jornal inglês The Guardian publicou um texto com o título: “Como Mohamed Salah conseguiu o impossível: unir o Egito”. A reportagem buscou depoimentos de várias pessoas ligadas ao futebol egípcio para tentar retratar o fenômeno. A fala mais emblemática, que chama a atenção pelo tom tão ufanista quanto exagerado, é de Mohamed Farag Amer, então chefe do Comitê Parlamentar de Esportes e Juventude do Egito. Para ele, “Mohamed Salah é realmente importante porque ele é um símbolo como Tutancâmon, como as pirâmides”.
A imagem de Mohamed Salah, mesmo depois do decepcionante desempenho do Egito na Copa de 2018, com três derrotas, seis gols sofridos e dois marcados, não foi abalada. As conquistas pelo Liverpool, com os títulos da Champions League e do Mundial Interclubes da FIFA, fazem com que sua reputação permaneça intocada, até porque, daqui a dois anos, há um novo mundial e os egípcios só pensam em, mais uma vez, disputar a Copa do Mundo. Um sonho que só parece possível graças a Mohamed Salah. Portanto, vida longa ao “Faraó”.
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