Estava com o texto pronto, falaria sobre o final do Campeonato Brasileiro com o foco nas narrativas sobre a gestão do futebol. Palmeiras, campeão, e Flamengo entrariam na análise que abordaria como “mecenas” do futebol e uma organização financeira ganham força nas representações de sucesso do futebol. O texto fica para outra oportunidade, já que o assunto não sairá tão cedo dos holofotes e comentários da imprensa esportiva. Mesmo assim, a questão do capital influenciando rumos estará, da pior maneira possível, presente no texto.
O esporte jamais se limitou às quatro linhas. Seu papel sociológico na formação de identidades, afetos e representações transborda os sentidos que uma partida pode fornecer. Há uma semana, quem ainda tinha alguma dúvida do poder catalisador de emoções do futebol, viu que “o futebol não é só futebol”. “Presenciamos”, como um amigo descreveu de forma apropriada, a partida mais intensa e emocionante que nunca aconteceu na história deste esporte. A tragédia da Chapecoense mostra como o desporto provoca sentidos que muitas vezes não conseguimos descrever e muito menos transmitir. O alemão Gumbrecht, grande influenciador de nosso grupo de estudos, destaca este fato no seu livro “A Produção Da Presença”. Colegas de imprensa, dentre eles meu querido professor Victorino Chermount, faleceram neste terrível acidente. Nós da imprensa que sempre tentamos transmitir esta emoção e intensidade de um jogo em seu ponto máximo e fazer o leitor, ouvinte, telespectador e internauta estar cada vez mais presente no espetáculo, tivemos que ser consolados. Nós não somos super heróis! Não mesmo. Tentamos reproduzir o que sentimos à beira do campo através de nossas falas e textos, mas desta vez não conseguimos. É complexo demais! E num momento desses faltam palavras…
Mais do que explicar, sentimos! Sentimos o maior exemplo de dignidade humana, que julgávamos tão em baixa no mundo. O povo colombiano nos mostrou como se envolver de maneira tão respeitosa, afetuosa e sem exageros sensacionalistas com uma tragédia tão grande! Imediatamente o Atlético Nacional abriu mão do título em homenagem póstuma a Chape. Não por estratégia de marketing (desculpem os mais apegados a este ramo), mas por uma simples e direta demonstração do sentimento mais puro que o ser humano pode ter: amor.

Será que se um clube pequeno da Colômbia viesse disputar uma final contra um grande clube brasileiro, faríamos o mesmo? Longe de julgar e procurar vilanizar ou glorificar posições, a ideia aqui é refletir sobre como somos dualistas e procuramos explicar, moldar, justificar e entender tudo o que acontece. A consciência é algo em constante movimento, difícil de ser estabilizado, como um bêbado tentando andar em linha reta (como metaforiza Muniz Sodré). Por isso alguns fatos são tão difíceis de serem compreendidos e “mais simples” de serem sentidos.
Peguei-me chorando algumas vezes ao ver as imagens e depoimentos sobre a tragédia. Senti muito, compreendi pouco. Esse é o lado humano, da empatia, de se colocar no local do outro, de se sentir pertencente àquela cidade, torcida, pessoas que se foram, sem jamais ter pisado em Chapecó ou conhecer todos os envolvidos. Este sentimento coletivo, o esporte proporciona de maneira intensa. Choramos quando ganhamos ou perdemos um título de nosso clube ou da seleção. O clube Chapecoense funcionava como elo simbólico e de pertencimento de quem morava na cidade e agora de uma quantidade enorme de pessoas ao redor do mundo que se solidarizaram com a “fatalidade” e demonstram intenção de ajudar a reerguer este clube. Porém, muito mais do que isso, nos sentimos impotentes por conta de não conseguir controlar, andar na linha reta que o bêbado não consegue e ver no final o roteiro que planejamos. Num jogo de futebol, assim como na vida e na interação diária, sabemos que nem tudo sai como planejamos, existe o outro, existe a empatia, assim como existe o individualismo e o resultado pode fugir de nossas mãos. É imprevisível, por mais que procuremos adivinhá-lo.
Quem poderia imaginar que a defesa do goleiro Danilo no último lance do jogo contra o San Lorenzo colocaria ele e seus companheiros no voo que os tiraria a vida? Quem poderia desconfiar que um clube, ignorando a situação, tentaria e depois recuaria, usar do contexto para se salvar de um rebaixamento? Quem poderia prever que um dono de empresa aérea, colocaria em risco a sua vida e a de seus “clientes” para economizar 10 mil reais? Quem, sentindo a plenitude da dignidade humana após ver a manifestação colombiana, poderia compactuar que o lucro de uma empresa pode valer mais que a vida de pessoas? Para piorar, como, diante de todo este quadro, um presidente ilegítimo e golpista pode comemorar com charutos e espumante a aprovação da PEC-55 que viola o acesso à dignidade humana (saúde, educação e segurança) na mesma noite em que o país chorava e estava de luto?
Seria ótimo vivermos no mundo de empatia estimulado pelos colombianos, não? Seria lindo viver num mundo em que as torcidas organizadas se abraçam e entendem que a morte não é algo que se deseje a ninguém? Seria fantástico deixarmos de vez uma superioridade de nos acharmos os bam-bam-bans do continente e vermos que temos muito mais em comum com os irmãos sul-americanos do que imaginamos? Seria perfeito viver num mundo onde as pessoas compreendam que ter mais que simpatia e sim empatia pelo próximo pode ser a nossa salvação? Seria pedir demais viver num mundo onde a técnica seria superada pelo bom senso e, num exemplo bem idiota, o juiz não daria cartão amarelo para um jogador que mostrou uma camisa de apoio a Chape ao invés de mostrar a marca do patrocinador de seu clube?

O afeto que vimos tão aflorado nesta última semana possui uma força enorme de romper as barreiras de um tecnicismo, muitas vezes econômicos, que obstruem o olhar para o outro? O esporte nos ensina, instiga, pode influenciar, mas nunca determinar. Cabe a cada um de nós decidirmos o que vamos aprender com essa tragédia. Que caminho vamos seguir? O vale tudo pelo lucro da empresa ou o tudo vale para nos aproximarmos cada vez mais um dos outros? São conflitos intermitentes que pesam em nossa balança, mas que, creio eu, devemos deixar o lado da empatia e amor sempre mais pesado. Nesse cambaleio equilibrista da consciência bêbada, a linha que deve nos orientar é sempre a da dignidade humana.