Matéria originalmente publicada em 03 de junho de 2011 no jornal O Globo.
As atuações de Neymar e Ganso no Santos têm provocado o ressurgimento do debate entre futebol-arte, que seria nossa essência, e futebol-força, que seria o emblema do futebol europeu. Geralmente este debate só aparece quando a seleção brasileira está jogando. Raríssimas vezes ele surge no nível local. Mas o Santos de Neymar e Ganso trouxe o tema à tona. Existiria mesmo uma essência ou um estilo de futebol que seria típico do brasileiro?
Este tema surge a partir de um artigo de Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco durante a Copa do Mundo de 1938, chamado “Foot-ball Mulato”. Um dos mais renomados cientistas sociais do Brasil, Freyre escreve que “acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas, técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto”. O melhor emblema deste estilo naquela época seria Leônidas da Silva.
Em uma período de consolidação dos estados-nações, dos movimentos integracionistas e nacionalistas no país e da da atuação exemplar do jornalista Mário Filho, amigo de Freyre, a crença no suposto estilo unia um Brasil miscigenado que buscava um sentido de identidade nacional. Além disso, durante 1950 a 1970 o Brasil montou seleções fantásticas, com jogadores extraordinários, tendo vencido três Copas do Mundo. Era a época de ouro do futebol brasileiro, com estádios cheios, os dribles de Garrincha e a consagração definitiva de Pelé como o Rei do Futebol.
De 1970 para cá, tivemos uma geração de craques extraordinários como Zico, Falcão, Junior, Cerezo e Sócrates, ídolos e heróis em seus clubes, mas que não venceram uma Copa do Mundo. Ainda assim, a seleção de 1982 é lembrada como a que jogava a tal essência do nosso futebol. O debate entre futebol-arte e futebol-força, ou de resultados, retorna a cada Mundial e quase sempre em tom de lamento. Até mesmo na conquista do tetra em 1994, parte expressiva da imprensa não reconhecia aquela seleção como sendo “brasileira”. Romário – e um pouco menos Bebeto – era visto como o único exemplar do nosso suposto estilo.
Ora, se de 1970 a 2010 somente a seleção de 1982 teria apresentado o estilo de jogo brasileiro e se hoje o Santos é o único clube do país que estaria jogando desta forma, o que chamamos de “nosso estilo” ou “essência” seria a regra ou a exceção?
Há quem afirme que a derrota da seleção de 1982 implicou em um retrocesso na nossa maneira de jogar futebol. O que teria mudado se tivéssemos vencido em 1982? A geração do Zico teria conquistado um Mundial e, talvez, por conta disso, o próprio Zico não tivesse feito o esforço sobre-humano para jogar em 1986. Mas um dia todos aqueles jogadores iriam mesmo parar de jogar, surgiria um Romário quase como um exemplar isolado e genuíno deste suposto estilo, e teríamos que esperar, como esperamos, algumas décadas até surgir, de uma só vez, jogadores como os Ronaldos e hoje Neymar e Ganso.
Neymar e Ganso são jogadores extraordinários, daqueles que contamos nos dedos na história do futebol. Sobram-lhes recursos técnicos e habilidades corporais. Seria uma heresia para, nós, brasileiros, dizer que eles possuem um estilo universal de se jogar o melhor futebol. Afinal, eles fariam parte desta tradição que seria somente “nossa”, possuidora de um futebol dionisíaco, conforme disse Gilberto Freyre.
Mas talvez fosse o caso de, humildemente, reconhecermos que jogadores extraordinários possuem estilos semelhantes: o estilo extraordinário. O Brasil de Neymar e Ganso também é o Brasil de Obina, Toró e tantos outros jogadores de primeira divisão, muita vezes idolatrados por sua bravura e entrega, mas que não pertencem à galeria dos extraordinários. E talento faz parte das coisas inexplicáveis, indizíveis. Não tem pátria. Por sorte, Neymar e Ganso são brasileiros!
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