O “descontrole emocional” nas explicações sobre a tragédia alvinegra

Por: Fábio Rios

O campeonato brasileiro de 2023 vem sendo considerado por jornalistas e torcedores como um dos mais emocionantes da história do futebol nacional – ou pelo menos, desde a implantação do modelo de “pontos corridos”, para adotarmos um recorte que torne esta mensuração mais factível. E isso se deve ao grande número de postulantes ao título até as últimas rodadas da competição (seis equipes com chances reais até a penúltima rodada), bem como ao número considerável de clubes lutando até o fim por sua permanência na Série A. Na última rodada, o Palmeiras confirmou mais um título, que já havia sido encaminhado na partida anterior, mas a luta contra o rebaixamento se manteve aberta entre Bahia, Vasco e Santos até os minutos finais, concluindo-se com o primeiro descenso da história do alvinegro praiano. Alegria de uns, tristeza de outros… no futebol, como na vida. 

Apesar do grande número de equipes e torcedores engajados até o fim em disputas lancinantes, provavelmente ninguém vivenciou tantas emoções ao longo da competição quanto os torcedores do Botafogo. O clube carioca certamente merece um capítulo à parte nesta história, tendo contribuído mais que qualquer outro para o alto nível de excitação produzido pelo brasileirão este ano. 

Isso porque, apesar do péssimo desempenho no primeiro semestre da temporada (sobretudo no campeonato carioca), o time apresentou uma radical melhora no início do campeonato brasileiro, enfileirando resultados positivos que surpreenderam até mesmo o mais otimista dos botafoguenses (supondo-se, é claro, que haja algum). Em sua empolgante trajetória, o clube construiu a melhor campanha de primeiro turno da história dos pontos corridos, e chegou a abrir treze pontos de vantagem para o segundo colocado, contando ainda com Tiquinho Soares como o craque da competição àquela altura. Estádio lotado, torcida em êxtase, tudo finalmente dando certo. Porém…

O primeiro revés do Botafogo foi a transferência do técnico Luís Castro para o “mundo árabe”, a convite de ninguém menos que Cristiano Ronaldo. Com isso, Cláudio Caçapa assume interinamente e mantém o alto nível de desempenho da equipe por alguns jogos, mas se retira em pouco tempo para assumir um posto de destaque no Lyon – clube francês que vem sendo priorizado no conglomerado futebolístico de John Textor. Em seu lugar, contrata-se o enigmático Bruno Lage, iniciando-se assim um período de acentuada queda de rendimento do time: eliminação na Copa Sul-Americana, perda da invencibilidade no “tapetinho”, redução da vantagem para os concorrentes… Após uma incômoda sequência de resultados negativos, Lage é substituído por Lúcio Flávio, que logo retoma o caminho das vitórias e a expectativa de dias melhores. 

Contudo, eventos sinistros logo voltariam a atormentar os botafoguenses: empate contra o Athletico-PR após sucessivas quedas de energia no Nilton Santos, derrotas para Cuiabá e Vasco, que lutavam contra o rebaixamento, e finalmente… duas viradas históricas sofridas contra Palmeiras e Grêmio pelo traumático placar de 3 x 4. Na primeira, atuação inspirada de um jovem Endrick, motivada por um aparente mal-entendido¹. Na segunda, atuação magistral do veterano Suárez, que só esteve em campo naquele dia em função da indisponibilidade do “tapetinho” alvinegro. Tudo isso, jogando em casa. 

A partir dessa sequência, o Botafogo simplesmente não conseguiu mais vencer no campeonato. Com requintes de crueldade, deixou duas vitórias escaparem após gols sofridos nos estertores das partidas. Assim, o time que chegou a sonhar com o título e a quebra de um jejum de quase trinta anos teve que se contentar com uma mísera vaga na Pré-Libertadores. Um declínio surpreendente até mesmo para o mais pessimista dos botafoguenses (supondo-se que haja algum que não o seja). E como ficou o coração dos torcedores diante de tudo isso? 

Lembro que em meio à excelente fase do Botafogo no primeiro turno, provoquei um amigo dizendo que estava preocupado com a torcida alvinegra, a qual não estaria acostumada à tamanha felicidade e não teria estrutura psicológica para lidar com a emoção da conquista. E logo em seguida adicionava, resignado com a aparentemente inevitável conquista do rival, que talvez fosse melhor assim, pois àquela altura, um eventual declínio seria ainda mais avassalador para a saúde dos botafoguenses. 

Clubismos e jocosidades à parte, algo que me chamou atenção nas últimas semanas foi justamente a proliferação de análises concernindo às emoções de torcedores e atletas do Botafogo diante do terrível quadro que se desenhava. Nesse sentido, destacam-se algumas reportagens com foco na saúde mental dos torcedores diante das incertezas e frustrações geradas pelo mal desempenho da equipe. 

No começo da crise, quando o time já vinha vacilando, mas ainda preservava uma considerável vantagem em relação aos adversários, o jornal O Globo publicou a seguinte matéria, em 26/11/2023: “Montanha-russa no Brasileirão transforma Botafogo em tema de terapia para torcedores²”. Partindo da relevância assumida pelo tema nos consultórios de psicologia, o texto abordou a ansiedade dos torcedores, motivada pelas oscilações do time e pelo sentimento de antecipação em relação ao provável título, o que vinha gerando dificuldades para lidar com tarefas e obrigações cotidianas. Um dos entrevistados chegou a relatar que estava cogitando largar o emprego para acompanhar o time na reta final, de modo a garantir presença no jogo de confirmação do título – mostrando-se grato a sua terapeuta, que o havia dissuadido do arriscado plano.

Foto: divulgação – Pedro Certezas

Já no dia 04/12/2023, logo após a penúltima rodada, quando o clube já havia sido matematicamente eliminado da disputa, o portal G1 publicou uma reportagem intitulada: “Felipe Neto, Pedro Certezas e mais: quais lições de saúde mental o Botafogo deixa para torcedores³”. Apoiando-se na visão de psicólogos, a matéria alertava para os riscos da desmesura na relação dos torcedores com o futebol, prescrevendo a necessidade de moderação. Em que pese o valioso sentimento de pertença produzido pelas comunidades de sentimento formadas com base nos clubes, seria preciso saber limitar os efeitos desta paixão sobre outros setores da vida pessoal e profissional, tratando o futebol com mais leveza e parcimônia. 

Para além da preocupação despertada pela angústia dos torcedores, as emoções dos atletas também se tornaram alvo de escrutínio geral. Assim, a queda de rendimento da equipe passou a ser atribuída, principalmente, à fragilidade emocional dos jogadores, que não teriam conseguido lidar com o favoritismo e com as altas expectativas criadas por seu excelente desempenho na primeira fase. Tal perspectiva pode ser encontrada em uma reportagem do Jornal Extra publicada em 05/12/2023: “Psicólogos opinam sobre como Botafogo foi de melhor 1º turno da história para uma das maiores entregadas já vistas4”.

Na linguagem técnica empregada pelos profissionais consultados, o insucesso do Botafogo seria um exemplo clássico de “autossabotagem”, situação na qual um indivíduo ou grupo não se sente apto ou merecedor o bastante para lograr determinada conquista e acaba esmorecendo. Na linguagem popular, os jogadores do Botafogo teriam simplesmente “amarelado” ou “pipocado”, sucumbindo diante da pressão exercida pelos torcedores e pela opinião pública. 

Em entrevista concedida à Sportv, após o empate contra o Cruzeiro, o atacante Diego Costa, um dos atletas mais experientes do elenco alvinegro, atribuiu o declínio da equipe ao clima de “oba-oba” que teria se instalado entre os jogadores, deixando-se indevidamente contaminar pela empolgação da torcida no período de bonança5. De modo semelhante, multiplicaram-se, nas redes sociais, fotos e vídeos de torcedores que cantaram vitória antes da hora, atraindo más energias ou vibrações que comprometeram o destino do clube (a famosa “zica”, como se usa dizer no futebol).

Todas essas avaliações sobre a derrocada do Botafogo e seus efeitos sobre a psique dos torcedores alvinegros remetem ao modo como as emoções são culturalmente definidas e vivenciadas na modernidade ocidental. Segundo Lutz (1988), nossa particular noção de pessoa seria marcada por uma forte oposição entre razão e emoção, com valorização da primeira em detrimento da segunda, que passa a ser entendida como sinônimo de excesso, descontrole e irracionalidade. Nesse sentido, as emoções se tornam fontes de perigo, devendo ser controladas em prol da manutenção da ordem cotidiana e do bem-estar físico e mental dos indivíduos. 

Em contraste com essa visão hegemonicamente negativa, o romantismo nos oferece um contraponto histórico, valorizando as emoções como signos de cuidado, humanidade e envolvimento, sobretudo no campo das relações pessoais – e particularmente nas definições mais tradicionais de feminilidade. Pela influência desse mesmo ideário romântico no contexto do futebol, temos a constituição das relações dos torcedores com seus “clubes do coração” na forma de um engajamento emocional, que se expressa em sentimentos de amor, paixão e fidelidade, valorizando-se os excessos e sacrifícios realizados como provas desse afeto arrebatador (Damo, 2002; Rios, 2018). 

De modo semelhante, o sociólogo Norbert Elias (1992), em seu célebre estudo sobre os esportes na modernidade, destacou a importância dessas atividades como “válvulas de escape” em sociedades governadas pelo mandamento do autocontrole decorrente do processo civilizador que formatou seus padrões culturais de subjetividade. Assim, o futebol, por exemplo, permitiria o extravasamento de pulsões normalmente reprimidas na vida cotidiana, dentro de certos parâmetros e limites que viabilizem sua expressão de modo seguro – um “descontrole controlado”, nos termos do próprio autor.

Nesse sentido, mesmo no universo do futebol, onde o terreno disponível à expressão das emoções é mais amplo, existem convenções que regulam sua manifestação e buscam prevenir, sobretudo, o transbordamento de seus efeitos para além do espaço-tempo encantado das partidas. Daí, a multiplicação de discursos sobre a necessidade de controle emocional por parte de atletas e torcedores do Botafogo. 

Segundo os especialistas consultados, os torcedores, por um lado, precisam tomar cuidado para que os excessos da paixão clubística não se convertam em doença, atrapalhando o bom andamento das relações pessoais e atividades sociais. É preciso saber “separar as coisas”, digamos assim. Por outro lado, caberia aos jogadores uma capacidade maior de força mental para manterem-se focados e confiantes no cumprimento da missão que lhes foi confiada. E a condenação de um suposto excesso de confiança por parte dos alvinegros em campo ou nas arquibancadas aponta ainda para uma dimensão moral das emoções, como se a terrível derrocada do Botafogo fosse uma punição pelo pecado original da soberba, uma forma de desmesura em si mesma. 

Em todos os casos, as emoções aparecem como um elemento nocivo a ser domesticado – e não por acaso, o bicampeão Palmeiras é comandado por um treinador cujo lema é “cabeça fria, coração quente”. Ainda que a frieza mental de Abel Ferreira possa ser questionada em vista do destempero manifestado em diversas ocasiões (minha preferida foi quando ele deu uma bicuda num microfone à beira do campo, na final da Supercopa do Brasil de 2023), o que importa em seu discurso é a busca pelo difícil equilíbrio entre razão e emoção, um caminho do meio que combine e preserve o que cada um desses elementos tem de melhor. Equilíbrio difícil e imprescindível… no futebol, como na vida.


¹Grito de ‘é campeão’ da torcida do Botafogo para atletas do Pan motivou Endrick, do Palmeiras; entenda | O Globo, Rio de Janeiro, 02/11/2023 | Acesso em: 14/12/2023

²Montanha-russa no Brasileirão transforma Botafogo em tema de terapia para torcedores | Extra, Rio de Janeiro, 26/11/2023

³Felipe Neto, Pedro Certezas e mais: quais lições de saúde mental o Botafogo deixa para torcedores | g1, 04/12/2023

4Psicólogos opinam sobre como Botafogo foi de melhor 1º turno da história para uma das maiores entregadas já vistas | Extra, Rio de Janeiro, 05/12/2023

5Diego Costa diz que faltou humildade ao Botafogo: ‘Deixar ego de lado’… | Uol, São Paulo, 03/12/2023


Referências bibliográficas

DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

Diego Costa diz que faltou humildade ao Botafogo: ‘Deixar ego de lado’ | UOL, 03/12/2023 | Acesso em: 07/12/2023

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

FRAGOSO, João Pedro. Montanha-russa no Brasileirão transforma Botafogo em tema de terapia para torcedores | O Globo, Rio de Janeiro, 26/11/2023 | Acesso em: 07/12/2023

FRAGOSO, João Pedro. Psicólogos opinam sobre como Botafogo foi de melhor 1º turno da história para uma das maiores entregadas já vistas | Extra, Rio de Janeiro, 05/12/2023 | Acesso em: 07/12/2023

GARCIA, Marina. Felipe Neto, Pedro Certezas e mais: quais lições de saúde mental o Botafogo deixa para torcedores | Portal G1, 04/12/2023 | Acesso em: 07/12/2023

LUTZ, Catherine. Unnatural Emotions: Everyday Sentiments on a Micronesian Atoll and Their Challenge to Western Theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.

RIOS, Fábio Daniel. Os torcedores e o Novo Maracanã: emoção e espaço nas arenas esportivas contemporâneas. 2018. 276f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

One thought on “O “descontrole emocional” nas explicações sobre a tragédia alvinegra

  1. O texto traz algumas reflexões e contribui com o debate que fiz na minha tese em 2018 onde questiono essa ideia de que o “emocional” é pensado como uma condição apartada do corpo, da tecnica, da gestão e do modo como o futebol se constitui no Brasil. Uma psicologia que desconsidera esses aspectos, corre risco de se tornar apenas uma “psicologia de bar” …

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