Por David M. K. Sheinin* y César R. Torres**
Em março de 2020, quando a pandemia do COVID-19 interrompeu repentinamente as temporadas de duas das grandes ligas desportivas profissionais norte-americanas (a National Basketball Association [NBA] e a National Hockey League [NHL]), ambas começaram a planejar seus retornos. Seus dirigentes traçavam possíveis cenários enquanto os prognósticos epidemiológicos, políticos e econômicos mudavam diariamente. Em contrapartida, os dirigentes da Major League Baseball (MLB) e da National Football League (NFL) não sentiam a mesma urgência da NHL ou da NBA, já que, por sorte, no ponto de vista deles, esses esportes estavam fora de temporada.
Ao final de julho, a MLB começou uma temporada mais curta que o habitual, de apenas sessenta partidas por equipe. Em agosto, a NBA e a NHL lançaram uma liga modificada para finalizar a temporada interrompida em março e a NFL abriu seus campos de treino para a temporada que começa em setembro. Ao mesmo tempo em que cada liga desportiva anunciava precauções para evitar a transmissão do vírus, os planos de retorno de cada uma e seus resultados eram mistos. A NBA e a NHL têm registrado muitos poucos casos de COVID-19 entre suas centenas de jogadores, treinadores, árbitros e outros integrantes. Por outro lado, a MLB e a NFL não têm tido tanto êxito. Cada dia há novos contágios e casos de comportamentos perigosos e irresponsáveis de parte dos jogadores.
A consequência tem sido partidas canceladas na MLB, jogadores que decidiram não jogar este ano para não colocar em risco sua saúde e muita incerteza. À primeira vista, a diferença entre sucesso e fracasso no controle do vírus se estabelece na estratégia da NHL e da NBA de colocar todas as equipes e suas comitivas (sem familiares) em uma bolha, sem contato com o exterior, e a falta dessa estratégia na MLB e na NFL. Entretanto, as estratégias das ligas desportivas e suas repercussões refletem políticas nacionais, culturas organizacionais e aproximações com o negócio do esporte com diferenças notáveis, anteriores à aparição do COVID-19. Representam também resultados, até certo ponto, previsíveis. Tudo isso é particularmente relevante em um ano-chave de eleições nos Estados Unidos.

A urgência do negócio
Há quatro décadas o negócio das ligas desportivas nos Estados Unidos e Canadá excede a venda de bilhetes. Os lucros provêm da venda de mercadorias, patrocínios de empresas a venda de direitos de transmissão e, na última década, as apostas online. Este tipo de apostas tem sido especialmente importante para a MLB e a NFL. Nos pequenos mercados como Cincinnati ou Baltimore, onde as equipes pouco jogam, empresas como DraftKings e FanDuel mudaram o negócio do esporte profissional. Antes da chegada dessas empresas, as partidas dos times de cidades com pouco apelo comercial contavam com baixa audiência, tanto online como na televisão. Porém, com a legalização das apostas online nos Estados Unidos, milhares de pessoas começaram a acompanhar as partidas, não por sua qualidade, mas pelo interesse monetário no resultado. Uma década atrás teria sido impensável uma relação entre as ligas desportivas e as empresas de apostas. Entretanto, na atualidade, a DraftKings é sócia oficial das quatro grandes ligas esportivas com sua logomarca colocada nas plataformas digitais de cada uma delas.
Apesar das queixas midiáticas pelas mudanças na cultura desportiva por conta da pandemia, com estádios sem público (ou com público de papelão), a ausência de espectadores ao vivo representa cifras relativamente menores para as empresas multimilionárias donas das equipes. Em 2020, a demanda tem sido voltar a jogar o mais rápido possível – com o público fora do estádio, protegido em suas casas, vendo os jogos pela televisão e, em milhares de casos, apostando online.
Canadá vs. Estados Unidos
Em julho, a cidade de Toronto e a província de Ontario aprovaram o pedido da única equipe canadense da MLB, os Toronto Blue Jays, para jogarem suas partidas como mandantes em Toronto. Porém, de última hora, o governo canadense anulou essa determinação. A MLB havia decidido não restringir o deslocamento dos times. O problema era que o Canadá não permitia que as equipes cruzassem a fronteira, já que em junho a curva da pandemia estava achatando e nos Estados Unidos o vírus continuava avançando rapidamente. Assim, os Blue Jays tiveram que utilizar um estádio inferior em Búfalo para seus jogos em casa.
A decisão canadense ressaltou as diferenças na maneira com a qual os dois países enfrentaram a pandemia desde março. Nos Estados Unidos, o governo nacional não tomou uma posição de liderança durante a crise. Não apensas ignorou os conselhos de seus especialistas em saúde pública, como também o presidente Donald Trump desarmou, ameaçou e marginalizou as entidades científicas governamentais. Enquanto isso, no Canadá, o governo nacional coordenou uma resposta centralizada, confiou na comunidade científica e deixou de lado as diferenças políticas com os governos provinciais e municipais para adotar uma estratégia comum e coordenada contra o COVID-19.
Em março, com exceção do tráfego comercial, o Canadá fechou a fronteira com os Estados Unidos. O exílio dos Blue Jays representa a posição da maior parte da população canadense: a fronteira deve permanecer fechada e o funcionamento da MLB é arriscado – um risco generalizado nos Estados Unidos, apoiado (ou tolerado) por seu governo nacional.
Esporte e cultura política
A NFL e a MLB são ligas desportivas que dependem muito mais da cultura política encarnada por Trump do que a NHL e NBA, especialmente no que se refere à questão racial, que cada vez define mais as crescentes diferenças entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Existem cada vez menos jogadores brancos em ambas as ligas, com um aumento notável nos últimos vinte anos de jogadores latinos na MLB e negros na NFL. De todo modo, em um país no qual a porcentagem de pessoas brancas segue diminuindo, o público da MLB e da NFL, tanto nos estádios, como na televisão, é cada vez menor, e, por sua vez, mais branco e mais velho. Faz pouco tempo que os Atlanta Braves abandonaram seu estádio no centro da cidade, colocando em perigo dezenas de pequenos negócios que dependiam da atividade comercial ao seu redor. Mudaram-se para um estádio novo fora da cidade. Para a segregação racial que segue definindo muitas cidades estadunidenses, essa mudança marcou o abandono de um lugar povoado por pessoas negras para uma área percebida como mais “tranquila” pelo público branco que assiste às partidas. O beisebol como negócio que confirma a segregação racial pode ser visível em muitas cidades. Em Detroit, os estádios de futebol e beisebol ficam a poucos metros de uma estrada que permite a um público quase completamente branco chegar a municípios suburbanos de carro, estacionar em vagas de estacionamento localizadas ao lado dos estádios, assistir à partida e voltar para os subúrbios sem entrar na cidade “perigosa” e com uma população majoritariamente negra.
Em 2016, Colin Kaepernick, o quarterback do San Francisco, se ajoelhou durante o hino nacional antes das partidas, em protesto pela brutalidade policial contra a comunidade negra. Os dirigentes da NFL, perplexos, não sabiam o que fazer. Trump os criticou pela indecisão, assim como por não terem punido Kaepernick e sua suposta falta de respeito com a bandeira e o hino nacional. Como no caso da MLB, o futebol acabou cedendo às demandas de um público cada vez mais branco e mais velho, um grupo demográfico do qual Trump depende eleitoralmente: a liga e as equipes conspiraram para negar um contrato a Kaepernick e, desde aquela temporada, ele nunca mais voltou a jogar.
A decisão da MLB e da NFL de não embarcar em um modelo de isolamento em bolhas para organizar suas temporadas acaba manifestando a cultura política de seu público, que tende a apoiar Trump. Esse apoio inclui hesitações sobre o perigo do COVID-19, ressentimento racial com as pessoas negras e latinas nas cidades que supostamente são fontes do vírus e a ideia de que a retomada das economias local e nacional está parada pelos controles “desnecessários” (distanciamento social, máscaras, quarentenas, lojas fechadas) impostos por governos locais e nacionais.
Essa política pode ser notada também nas temporadas de futebol universitário, outro negócio multimilionário, e suas duas ligas mais importantes. A Big 10 inclui universidades públicas dos estados de meio-oeste do país (Illinois, Indiana Michigan e Wisconsin, entre outros), que, em geral, conseguiram controlar a pandemia com uma política de distanciamento social, máscaras, quarentenas, lojas fechadas. A Big 10 cancelou sua temporada 2020. A Southeastern Conference (SEC) inclui universidades públicas de estados que não conseguiram controlar a pandemia (Alabama, Florida, Luisiana y Texas, entre outros) e nos quais se resiste ao uso de máscaras, muitos negócios permanecem abertos e prevalece uma suspeita generalizada sobre as autoridades de saúde pública. A SEC ainda segue com a ideia de organizar a temporada 2020.
O efeito David Stern
Por que a NBA e a NHL optaram pelo modelo da bolha? Ainda que esteja em Nova York, a NHL conta com capitais e fortes influência culturais canadenses. A metade dos jogadores, assim como sete das trinta equipes da liga são oriundas do Canadá. O Canadá também conta com um público numeroso, leal e fervoroso. Por outro lado, a política canadense frente à pandemia (incluindo os êxitos) também influenciou a rápida decisão da NHL de basear suas duas bolhas nas cidades de Toronto e Edmonton.
No entanto, existe um fator mais importante. Nem as políticas, nem os negócios das duas ligas desportivas são ligadas ao Partido Republicano nos Estados Unidos, o que abriu a possibilidade de uma estratégia contra o vírus livre da visão de Trump. Em parte, isso representa o legado de David Stern, o ex-dirigente da NBA que fez crescer o negócio de sua liga a nível nacional e internacional de 1990 a 2014, enquanto que a MLB e a NFL estavam em declínio. A sua postura no esporte levava em conta – e fomentava – as mudanças culturais nos Estados Unidos e o fato de que o público de basquete estava cada vez mais diversificado, com ampla representação da comunidade negra. Os dirigentes atuais da NBA (Adam Silver) e da NHL (Gary Bettman) começaram suas carreiras sob a liderança de Stern na NBA e se formaram com seu modelo de gestão – mais distante das influência de um ou outro partido político e mais ágeis para adaptarem-se a um cenário cultural, político e econômico que muda constantemente.
Como no caso da NFL, há uma história importante de discriminação racial na NBA. Mas, diferentemente da indecisão da NFL frente aos protestos de Kaepernick e de sua reação conspiratória, em 2015 quando o dono do Los Angeles Clippers, Donald Sterling, deu uma declaração racista, Silver o expulsou da liga e Sterling teve que vender as ações da equipe. Como discípulos de Stern, Silver e Bettman entendem como enfrentar as circunstâncias variáveis melhor que os dirigentes e que os donos das equipes de beisebol e de futebol americano. Assim, quando chegou a pandemia, ao contrário da MLB e da NFL, e com mais liberdade para agir, ponderaram as alternativas e elegeram a opção mais segura e mais rentável.
Uma bolha comprometida
Desenvolver sua atividade em uma bolha não implica abdicar da realidade política e social. Após o reinicio da temporada, e depois do assassinato do cidadão negro George Floyd pelas mãos da polícia no final de maio, muitos dos jogadores da NBA decidiram substituir seus nomes nas camisas por mensagens que remetessem à luta contra o racismo e a brutalidade policial, entre outras causas políticas e sociais. Os jogadores, muitos dos quais têm uma larga história de ativismo político e social, contaram com a anuência da NBA. Ao final de agosto, Jacob Blake, outro cidadão negro, foi baleado pela polícia. Indignados com o episódio, os jogadores boicotaram várias partidas, interrompendo a temporada. O grande protesto se propagou rapidamente para outros esportes, incluindo a NHL, a MLB e a NFL. Há poucos dias a NBA decidiu, junto com as outras ligas e com os donos das equipes, retomar a temporada, comprometendo-se com uma série de medidas “para abordar uma ampla gama de temas, incluindo o aumento do acesso ao voto, a promoção do compromisso cívico e a defesa da reforma policial e da justiça penal”. Silver declarou que aprova o “compromisso (dos jogadores) de lançar luz sobre temas importantes de justiça social” e continuou dizendo que “embora não caminhe nos mesmos sapatos que os homens e mulheres negros, posso ver o trauma e o medo que causa a violência racial e como continua o doloroso legado da desigualdade racial que persiste no nosso país”. Enquanto isso, Trump, incomodado pelo ativismo dos jogadores e o apoio da NBA, manifestou que a associação dirigida por Silver “se converteu em uma organização política” e que não pensa que “isso seja algo bom para o esporte ou para o país”. LeBron James, estrela da NBA e articulador dos protestos declarou: “Estamos fartos. Exigimos uma mudança”. Resta ver se a mudança que prevalecerá, não apenas no esporte, mas nas esferas culturais, políticas, sociais e econômicas mais amplas, é a impulsionada pelos jogadores e dirigentes da NBA ou a que promove Trump. As eleições de novembro indicarão, em parte, o rumo da mudança.
Texto originalmente publicado no site Marcha no dia 01 de agosto de 2020.
* Doutor em História. Professor na Universidade de Trent.
** Doutor em Filosofia e História do Esporte. Professor na Universidade do Estado de Nova York (Brockport).
Tradução: Leticia Quadros e Fausto Amaro
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