A imagem de um ídolo pode permanecer eterna? Em tempos onde megacomputadores e nuvens armazenam uma infinidade de dados, a resposta parece ser obviamente positiva, pelo menos quando se trata da preservação de dados ou imagens sobre ele. Mas é possível ir além de ser apenas mais um verbete numa imensa enciclopédia virtual? Nesse caso a situação é mais delicada, pois exigiria que esse ídolo, independentemente de sua área de atuação, estivesse mais presente no dia-a-dia das pessoas. É o caso de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé; primeiro jogador a alcançar o patamar de ídolo mundial e que, por isso mesmo, se notabilizou com a alcunha de Rei do Futebol. Sua grandeza nos gramados foi de tal monta que até hoje tem a majestade eternizada graças a filmes, documentários, livros, histórias em quadrinhos e até videogames. Mesmo quase cinco décadas após “pendurar as chuteiras”, o Atleta do Século XX, mantém seu prestígio.
O menino e a lenda
O brilho da carreira de Pelé, com suas atuações acima da média, conquistas e gols, muitos gols, gerou, evidentemente, um enorme interesse em torno do garoto talentoso que despontava no Santos Futebol Clube. Após a conquista do sonhado primeiro título mundial pela Seleção, em 1958, na Suécia, o jovem craque, de apenas 17 anos se tornou, então, o centro das atenções.
O franzino herói mal alçava a glória e sua trajetória já começava a ser contada, nem sempre, todavia, se baseando apenas na fidelidade jornalística dos fatos, como no caso do filme dirigido pelo argentino Carlos Hugo Christensen. A abertura do filme “O Rei Pelé”, de 1962 relata a seguinte frase, que teria sido dita pela parteira que trouxe o bebê Edson ao mundo: “O filho de vosmecê vai ser rei. Rei do mundo!”, numa clara alusão a uma suposta predestinação de Pelé. O longa metragem filmado em parceria com o produtor Fábio Cardoso se preocupava em reforçar a questão da superação da pobreza e “derrapava” no ufanismo ao descrever o Brasil como uma terra sem preconceito de cor, de raça ou de religião. Terra onde um menino como Pelé podia se tornar rei.
Discursos assim estavam muito em voga nos anos 1960, os chamados “Anos Dourados”. No livro “Viagem em Torno de Pelé”, de 1963, o jornalista Mario Filho também tratou de narrar a vida daquele que classificou como “o primeiro cidadão do mundo que o Brasil já produziu” (esquecendo-se, propositalmente, de nomes como Carmen Miranda ou Santos Dumont, por exemplo). O enredo narra a saga de seu protagonista: um menino pobre e negro, que passa por uma série de dificuldades, mas, no final, conquista o seu reinado. A clássica trajetória do herói.
Não faltaram, em todos esses anos, livros e filmes sobre Pelé. Publicações chegam a quase 20, inclusive escritas por autores estrangeiros. Também há uma autobiografia publicada em 2006. Nas telas, além do filme citado acima, outras três produções foram realizadas sobre o jogador: “Isto é Pelé” (1974), “Pelé Eterno” (2004) e “Once in a lifetime” (“O mundo a seus pés”), sobre a passagem pelo New York Cosmos. Pelé também participou de alguns filmes como ator, interpretando papéis de ficção e até aparecendo como ele próprio, como no caso do filme “Os Trapalhões e o Rei do Futebol” (1986).
Um novo olhar
Independente de tudo o que já se falou e já se mostrou de Pelé, o tema parece nunca se esgotar. É o exemplo do mais recente documentário sobre o Rei, lançado recentemente pelo portal de streaming Netflix. Com o título “Pelé”, o documentário de 108 minutos de duração, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas proporciona novas experiências, mesmo para aqueles que já conhecem mais profundamente a carreira de Edson Arantes do Nascimento.
A chegada do ex-jogador para o local onde seria conduzida a entrevista já nos choca. Um frágil Pelé caminha com a ajuda de um andador até a cadeira situada em meio a uma sala vazia. Uma imagem que é o oposto de todas aquelas que nos acostumamos a guardar na memória.
Talvez por ser dirigido por dois estrangeiros e, provavelmente, para agradar um público mais amplo, “Pelé” se atém a analisar o personagem e não apenas por seu impressionante desempenho nos gramados, mas dando espaço ao Edson (como o próprio Rei gosta de se referir a si próprio; na terceira pessoa).
Mesmo em quase duas horas de filme, fica claro que é impossível abordar todos os aspectos necessários para um perfil completo. No entanto, o documentário nos traz questionamentos que muitas vezes relevamos, levados pela crença de sua predestinação para o talento. As cenas de um Pelé bem menino já envergando a camisa do Santos e revolucionando a história de um clube através de suas jogadas e gols, por exemplo, me fizeram refletir sobre como tal carga de responsabilidade poderia ser absorvida por aquele imberbe adolescente. Como lidar com cobranças e idolatria tamanhas? E para nosso espanto e de todos os que tiveram o privilégio de acompanhar o surgimento de um gênio da bola, a tarefa lhe parecia suave, talvez porque acreditasse piamente na frase dita por seu pai e ex-jogador Dondinho: “Não há o que temer. Dentro de campo todos são iguais”. Tanto que em seus primeiros 4 anos de carreira já havia marcado mais de 350 gols.
Da glória da conquista de 58 à frustração da contusão na Copa de 1962, no Chile, o documentário trata de mostrar como a vida do jovem de pouco mais de 20 anos havia mudado, com compromissos de carreira sendo mais implacáveis do que zagueiros “botinudos”. Pelé se transformara no mais requisitado garoto-propaganda e figura obrigatória em grandes eventos. A carreira e a vida pessoal sentiram.
Após o fiasco na Inglaterra, em 1966, onde mais uma vez saiu contundido, Pelé dava entrevistas afirmando que não dava sorte em Mundiais e que aquela seria sua última Copa, mesmo tendo apenas 26 anos.
O (a)político Pelé
Um dos motes do documentário era traçar um paralelo entre a carreira do Rei com o período da Ditadura Militar no Brasil. Tanto no depoimento para os diretores quanto em entrevistas ntigas fica claro que Pelé nunca se atreveu a questionar o cenário além das quatro linhas. Afirmava que não tinha como saber o que acontecia ao certo e que o papel dele era jogar futebol.
Após marcar o gol mil, que aliás contou com cenas que nunca tinha visto, inclusive com entrevistas antes e após a partida concedidas à jovem jornalista Cidinha Campos, Pelé foi convidado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici para ir a Brasília. Foi levado do aeroporto ao Palácio do Planalto em carro aberto e lá recebeu os cumprimentos do ditador pelo feito.

É claro que atitude foi mal vista por quem se opunha ao regime de opressão que, nos finais dos anos 1960, após a promulgação do AI-5, se encontrava mais sanguinário do que nunca. Exigiam do jogador uma postura mais combativa, como a tomada pelo boxeador americano Muhammad Ali, preso por se recusar a lutar na Guerra do Vietnã. Mas, em uma entrevista para o documentário, o jornalista Juca Kfouri lembra que eram situações bem diferentes. Segundo ele, Ali não seria morto na prisão, porém o mesmo não se podia dizer de Pelé. “Só quem já viveu numa Ditadura Militar sabe onde arde”, lembrou Juca.
O governo queria, a todo custo, que o Brasil vencesse a Copa do México e Pelé fazia parte dessa estratégia. O filme não deixa claro que tenha havido qualquer tipo de pressão para que ele revogasse a promessa de não mais jogar Mundiais, mas fica subentendido que havia uma cobrança sobre o Rei para a conquista da Taça. A comissão técnica era basicamente formada por militares e o treinador João Saldanha (um militante comunista), após classificar suas “Feras” nas eliminatórias, foi devidamente substituído por Zagallo. Mais um ponto para o documentário em relação à narrativa desse período turbulento; são apresentadas entrevistas raras de Saldanha que ajudam a mostrar como era clara sua postura beligerante em relação às normas que o Regime exigia, uma “briga” que respingou até para Pelé, acusado por Saldanha de ter um problema de visão que comprometeria suas atuações.
Ao desembarcar de volta do México, com a taça em mãos, a primeira parada da Seleção foi na Capital Federal. O roteiro planejado tinha sido cumprido com louvor. E não apenas Pelé, mas todos aqueles jogadores, contrafeitos ou não, tiveram que participar da cerimônia.
Nas ruas, tanto durante o Mundial, quanto na recepção aos campeões, se deu uma espécie de hiato cívico, mesmo quem sabia que a vitória contava pontos para a Ditadura, acabou não resistindo à magia daquela seleção e comemorou. Ao fim do documentário, numa rara opinião sobre essa questão, Pelé afirmou: “A Copa de 70 foi importante para o País. Se perdêssemos, poderia piorar tudo. O fato de a gente ser campeão fez com que o país todo desse uma respirada. Eu acho que 70 foi mais pro país do que pro futebol”.
A riqueza de um reinado
Um dos maiores méritos do documentário “Pelé” está na bela pesquisa de imagens e áudios que ajudou a resgatar pérolas da tão decantada carreira do Rei do Futebol e que se mantinham praticamente inéditas. Cenas que nos surpreendem, encantam e emocionam.
A fragilidade de Edson se contrapõe à vitalidade de cada lance, cada gol mostrado. Suas falas são curtas e não me parece que essa tenha sido uma opção da edição. Apesar de ainda ter 81 anos, o Rei parece um nobre cansado de tantas batalhas e se atém, quase todo tempo, apegado às mesmas respostas estudadas como fez durante toda a carreira, evitando riscos que julgue desnecessários à sua imagem.
Contudo, surpreendentemente, o documentário de Tryhorn e Nicholas nos traz um presente. Um outro Pelé, sorridente e descontraído, ao participar de um encontro com seus ex-companheiros de Santos. Parecem, mesmo, duas pessoas diferentes. Talvez, porque naquele instante, a máquina do tempo da emoção tenha entrado em ação. Naquela hora, ao lado daqueles que dividiram com ele o prazer do futebol, o Rei deixa cetro, manto e coroa de lado e se permite disfrutar aquele momento, livre de qualquer compromisso ou cobrança. Afinal, como bem disse Dondinho, ali, eram todos iguais.