O que é que o Bahia tem?

Você torceria por outro time?

Uma pergunta assim, para quem é apaixonado por futebol, chega a ser quase uma afronta. Não chego ao extremo de questionar se você torceria contra seu próprio time, mas será que seria capaz, por uma questão de simpatia, de identificação, realmente torcer pelo sucesso de outro clube? Em um país como o nosso no qual a monogamia clubista é mais respeitada do que sua versão amorosa, seria difícil crer que esse flerte fosse possível, embora, na prática, isso venha acontecendo. O responsável por tal sedução atende pelo nome de Esporte Clube Bahia.

Um fenômeno assim, é claro, não surge por acaso. A crescente admiração de torcedores coirmãos pelo tricolor soteropolitano se deve a diversas ações da diretoria do clube em relação a questões bastante delicadas no Brasil, como inclusão social, igualdade de gênero, preconceito racial e, mais recentemente, defesa do meio ambiente. Tais estratégias são desenvolvidas pelo Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia, criado em janeiro de 2018, no início da gestão do presidente Guilherme Bellintani. “O futebol é um canal que pode servir para acentuar o que há de pior na nossa sociedade, como o racismo, as agressões, a violência e a intolerância, mas também pode servir de uma forma diferente – para espalhar cultura, afeto, sensibilidade, melhoria das relações humanas”, afirma o gerente de Comunicação do Bahia, Nelson Barros.

Fé na diversidade e no Bahia.
fonte: @ecbahia

O currículo do atual presidente do Tricolor de Aço foge do padrão dos dirigentes esportivos brasileiros. É empresário, mas também tem uma vasta atividade acadêmica. É formado em Direto, tem mestrado em Educação e doutorado em Desenvolvimento Urbano. Foi, também, secretário municipal de Educação de Salvador. Seu mandato faz parte do movimento de reestruturação do clube que, em razão de dívidas milionárias, chegou a sofrer uma intervenção, determinada pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Atualmente, os sócios elegem o presidente do clube, sem filtro ou participação dos conselheiros. São realizados encontros periódicos sobre temas de discussão da torcida, como um fórum de debates. E no site do clube há uma seção voltada para a transparência administrativa, atualizada mensalmente, com todo o detalhamento dos gastos. “Temos o objetivo de consolidar o Bahia como o clube mais transparente e democrático do Brasil. Está inclusive no Plano de Ação da nossa gestão, documento trabalhado diariamente pelos gerentes de cada área do clube. Para se ter uma ideia, ao lado da mesa todos há uma espécie de cartolina com as 31 ações”, reforçou o presidente numa entrevista após a reunião em que o Conselho Deliberativo aprovou que os sócios também possam votar online já no próximo pleito.  Ainda de acordo com Guilherme, o bom desempenho esportivo só pode vir com uma constante mudança na gestão do clube, ou seja, com a redução do endividamento e o aumento da receita. Hoje o Esporte Clube Bahia tem o 14º orçamento dos 20 clubes que disputam a primeira divisão do Campeonato Brasileiro. “A gente precisa ser mais clube. Um clube mais forte, faz um time mais forte”, afirma.

Tirar da cabeça o que não se tem no bolso

Para um time que chegou a disputar a terceira divisão do campeonato nacional e que, depois, ficou indo e vindo da segundona, é preciso se firmar para seguir adiante e o fortalecimento do programa de sócio torcedor se tornou uma das ações mais efetivas nesse sentido. Em uma entrevista ao canal Bandsports, após completar um ano e meio de mandato, Bellintani destacou a necessidade de trazer de volta aos estádios uma grande parcela da torcida afastada desde a implantação do que ele chama de “era das grandes arenas”. Para isso foram criadas diversas versões de planos de fidelização. “Salvador tem um dos piores PIBs per capta do Brasil. Não adiantava apenas replicar planos de sócio torcedor como os que são oferecidos em outros centros urbanos”, ressalta o presidente.

O plano Bermuda e Camiseta é destinado a torcedores de baixa renda e atende torcedores que ganham menos de R$ 1.500,00 por mês. A mensalidade é de R$ 45,00. No plano Bahia da Massa, a pessoa não precisa comprovar renda. Paga R$ 60,00 por mês e tem direito a assistir às partidas no anel superior da Fonte Nova. Os outros sócios, que pegam mais caro, têm, em compensação, vantagens como descontos na cerveja e na compra de produtos oficiais. Com isso, o clube chegou à marca de  27 mil planos vendidos, mais do que metade da lotação do estádio. “Ticket caro não lota a Fonte Nova”, garante Bellintani.

Outra medida de sucesso foi romper com os grandes fabricantes de material esportivo e gerenciar a produção dos próprios uniformes. As mesmas fábricas e os mesmos materiais foram usados, só que ao invés da marca famosa no lado direito do peito, a logo Esquadrão, criada pelo clube. A iniciativa gerou lucros e impulsionou as vendas, com inciativas ousadas como oferecer camisas oficiais a menos de R100,00, algo inédito entre os grandes clubes brasileiros. Para se ter uma ideia, uma camisa oficial do Flamengo chega a custar R$ 250,00. Mesmo assim o faturamento subiu. Antes, a cada cem reais vendidos em material esportivo, o Bahia recebia dez, agora esse número subiu para 25 reais. Além do mais, quem define o modelo da camisa que vai ser usada pelo time, a cada ano, é o próprio torcedor, a partir de uma eleição.

O crescente envolvimento da torcida permitiu que acontecesse um fato que chamou a atenção da imprensa de todo o país. A chamada “batalha da cerveja” na Arena Fonte Nova. O consórcio que administra o estádio desde o final da Copa de 2014 anunciou que não ofereceria mais o desconto de 50% no preço da cerveja para os sócios torcedores e ainda decretou um reajuste, de seis para oito reais. A medida foi rechaçada pelo Bahia e o próprio presidente incitou, via Twitter, um boicote aos bares do estádio, sugerindo que os torcedores comprassem cerveja apenas nos vendedores ambulantes que ficam nos arredores do estádio. A AMBEV, concorrente  da cerveja Itaipava (Grupo Petrópolis), oferecida com exclusividade na arena, se aproveitou da situação e decidiu vender latinhas de Brahma a R$ 0,50 para os ambulantes, de forma que esses pudessem repassar a cerveja aos torcedores por apenas um real. Até uma lata customizada, com as cores do clube foi criada.  Com o prejuízo, a única saída para o consórcio foi voltar atrás, tanto no preço, quanto no desconto.

A “batalha da cerveja” misturou marketing e paixão.
fonte: https://www.correio24horas.com.br/

Tudo pelo social

Atitudes assim chamaram a atenção de torcedores de outras partes do país, no entanto, foram as campanhas de cunho social que tiveram maior impacto.  Para o gerente de Comunicação Nelson Barros, a repercussão superou qualquer expectativa. “Percebemos a reação da torcida com uma surpresa absurdamente positiva. Em nenhum momento o objetivo das ações afirmativas foi a repercussão, fazer sucesso, virar ‘case‘. Começamos a nos posicionar porque acreditávamos naquilo – e seguimos com o mesmo espírito. Eis que não só nossa torcida como os torcedores de outros times, espalhados pelo Brasil, até mesmo de nosso arquirrival, o Vitória, passaram a nos elogiar, a nos seguir, a nos compartilhar, a se associar ao clube, a comprar produtos do Bahia. Está sendo algo muito bonito e inspirador”.

Uma das primeiras iniciativas a chamar a atenção foi o Novembro Negro e nada mais significativo já que, segundo dados do IBGE, a população do estado é composta por 82% de negros e pardos. Numa partida contra a Chapecoense, os jogadores entraram em campo com nomes de importantes figuras da cultura negra. O camisa 10 foi Batatinha, um dos grandes nomes do samba na Bahia, a 9 ficou com Luis Gama, patrono da abolição da escravatura no Brasil e a do goleiro foi dedicada a Zumbi dos Palmares. As mulheres negras não ficaram de fora: Dandara, Luísa Mahim, Maria Felipa e Mãe Menininha. Entre os nomes ainda estava o de mestre Moa, capoeirista assassinado em uma briga por motivação política, no dia do primeiro turno das eleições de 2018.

O Bahia, por sinal, é um dos poucos clubes do Brasil a ter um treinador negro. O gaúcho Roger Machado, de 44 anos se adaptou muito bem não apenas a Salvador, mas também a essa linha de inclusão adotada pelo clube baiano. A consciência de que muito ainda precisa ser feito nesse sentido foi expressada na coletiva que ele concedeu após uma partida contra o Fluminense, no Maracanã. Como o treinador adversário, Marcão, também era negro, a mídia tentou celebrar o fato, mas Roger tratou de colocar os pingos nos is e mostrou como o ineditismo daquela situação era a maior prova de que há algo errado no país. “A gente precisa falar sobre isso. Precisamos sair da fase da negação. Nós negamos. ‘Ah, não fala sobre isso’, porque não existe racismo no Brasil em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando eu vou no restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Vocês está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui”

O trabalho de Roger Machado não se limita ao comando do time principal. Passa boa parte de seu dia no Fazendão, centro de treinamento do Bahia, onde trabalha ao lado do experiente preparador físico Paulo Paixão. O treinador caiu nas graças do torcedor tricolor pelas atitudes à beira do gramado e também fora dele. Em outubro deste ano ele convidou três meninos que vendiam amendoim na frente do Fazendão para assistirem a um treino. Noutra ocasião ensinou os meninos a baterem pênaltis, sendo ele mesmo, Roger, o goleiro.

Estufando a rede

 As redes socias têm sido uma ferramenta poderosa do desenvolvimento dessas ações afirmativas. Hoje o BAHÊA, como é popularmente conhecido, tem 545 mil seguidores no Instagram e cerca de um milhão e cem mil no Facebook. É nesses canais que são veiculadas as campanhas como #BahiaClubedoPovo, onde crianças mostram que se nas babas (como os baianos chamam as peladas ou rachões) que disputam não há o preconceito, porque deveria haver no futebol profissional.

Outra iniciativa que chamou bastante a atenção foi a que combate a homofobia. Uma camisa com a frase “Não há impedimento”, foi lançada pelo clube como uma demonstração de apoio à causa LGBT. “O Bahia sempre se preocupa em defender causas humanitárias – e não de esquerda ou direita. Nunca você vai encontrar viés político-partidário. São lutas de direitos humanos. Até pouco tempo, talvez não houvesse nenhuma polêmica. Mas decidimos nos envolver, mesmo assim, porque nos consideramos um elemento de identidade cultural e social do Estado da Bahia”, defende o jornalista Nelson Barros.

Campanhas do E.C. Bahia mandam o preconceito para escanteio.
fonte: @ecbahia

Em agosto de 2019, o tricolor abraçou a causa contra o abandono paterno. Cerca de 5,5 milhões de crianças no Brasil não possuem o nome do pai no registro. Por ocasião do dia dos pais, o Bahia ofereceu testes de DNA de graça na loja oficial do clube. Foram realizados mais de 200 exames.

A iniciativa mais recente foi um protesto contra o derramamento criminoso de óleo que atingiu praias de todos os estados nordestinos. Uma camisa especial foi confeccionada para a partida contra o Ceará, no dia 21 de outubro (os jogadores do Vozão também fizeram um protesto e entraram em campo usando luvas negras, como as usadas por moradores na retirada voluntária do óleo que atingiu o litoral). “A ideia surgiu porque estávamos incomodados com a ausência do governo em relação ao impacto causado. Decidimos, então, ajudar quem estava tomando para si a função que deveria ser do estado”, explica Tiago César, um dos coordenadores do Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia. Depois da partida, as camisas foram a leilão e os 8 mil reais arrecadados foram repassados para a ONG Guardiões do Litoral.

Futebol e denúncia, uma tabelinha que funciona.
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Embora a intenção do clube, de acordo com a diretoria, não seja usar esse material como uma estratégia de marketing com fins comerciais, fica claro que a mudança na imagem do clube vem sendo impactada positivamente, o que pode render ótimos dividendos a médio e longo prazo. “Achamos que os clubes têm de escolher se serão canais de amor ou ódio. Além disso, estamos diante de um cenário de alta visibilidade, cobertura diária da imprensa, milhões de seguidores nas redes sociais. A ideia é tentar alcançar o máximo de pessoas possível. Sendo o futebol, conseguimos atingir indivíduos que muito provavelmente não comentariam ou postariam sobre determinado assunto caso não houvesse participação do seu clube do coração”, finaliza Nelson Barros.

Que os baianos nos sirvam de exemplo.

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