Jack Milburn fazia parte da primeira seleção inglesa a participar de uma Copa do Mundo, justamente a de 1950, no Brasil. A equipe do atacante não conseguiu bons resultados no torneio e acabou sendo eliminada antes do quadrangular final – que consagraria o Uruguai como campeão no Maracanã. A Seleção Brasileira, como sabemos, amargaria um vice-campeonato doído, que resultaria numa tristeza e um sentimento de inferioridade que teria contaminado todo o povo brasileiro, como Nelson Rodrigues bem identificou, nos colocando como “vira-latas” diante de outras nações (1).
Contudo, Millburn – que representaria o povo que o mesmo Nelson dizia ser invejado pelo brasileiro – decidiu fazer uma análise daquela equipe comandada por Flávio Costa. À época, os “reis do football” eram os próprios ingleses, mas o atacante fez uma constatação surpreendente menos de dez dias após o Maracanazo. Com o título: “Os ingleses devem aprender football com os brasileiros”, ele escreveu sobre o talento e a busca do país em ser campeão:
Quatro de nós – Matthew, Mortensen, Wright e eu – estávamos olhando o Rio, da janela de nosso hotel… Embaixo, na rua, um garotinho, com as mãos nos bolsos das calças, estava encostado ao muro, de repente deixou cair uma laranjinha, chutando-a com o pé esquerdo e displicentemente rebatendo-a com o pé direito. Desde então, nós quatro observamos, fascinados. E abrimos a boca! Aquele menino mantinha a bola no alto, dançando, impulsionando-a nitidamente com os dedos dos pés – algumas vezes até à altura da cabeça, outras vezes até o joelho. Quarenta e duas vezes ele quicou a laranjinha e, finalmente, a título de floreio, enviou-a sobre os ombros, apanhando-o calcanhar. Ele se aborrecera com sua pequena performance. […] O Brasil, com toda certeza, está indo bem em football. Através de todo o país, milhares de menores como aquele garotinho, que mantivera, sem saber, quatro footballers ingleses de bocas abertas, em sua exibição de controle de bola, estão utilizando todos os momentos de folga para aperfeiçoar seus truques. Isso é mais do que uma loucura que está tomando conta do país, é uma cruzada. O Brasil está determinado a ser bom em football. E em cinco anos o Brasil liderará o football mundial (O GLOBO, 25/07/1950, p. 12).

A previsão de Milburn – do Brasil chegar ao topo do mundo -, contudo, se realizaria não em cinco, mas em oito anos. Esse estilo de jogo que, historicamente, seria atribuído ao brasileiro, era exaltado mesmo quando a equipe ainda era montada sem os principais jogadores, como na Copa de 1934: “Vejamos os processos dos brasileiros. Temos o que se pode chamar uma faculdade extraordinária de improvisação. Independente das formas de ataque ou de defesa que estão, pode-se dizer, preestabelecidas, restam-nos, ainda, as jogadas nascidas do ímpeto enthusiastico, criadas na exaltação do momento e que são, por isso mesmo, surpreendentes. Os brasileiros procuram, naturalmente, o jogo de conjunto, a combinação de todos os valores no esforço comum da victoria. […] Se somos menos robustos do que os adversários, ganhamos consequentemente em rapidez, em mobilidade, em recursos de finta” (O GLOBO, 26/05/1934, capa-p.3).
Assim, temos que o improviso, a finta, a picardia, a surpresa, desde os anos 1930, estavam presentes na Seleção Brasileira. Ou como o sociólogo Gilberto Freyre escreveu em 1938, no artigo “Football Mulato”(2), tantas vezes relembrado para falarmos do “nosso” “futebol-arte”: “No futebol como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de danças e de capoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca. Dança que permita o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica. […] O mulato brasileiro deseuropeizou o futebol dando-lhe curvas arredondadas e graças de dança. Foi precisamente o que sentiu o cronista europeu que chamou aos jogadores brasileiros de “bailarinos da bola”. Nós dançamos com a bola” (FREYRE, 1938).
Na quinta-feira passada (08), ao assistir Brasil e Chile, começo melancólico das Eliminatórias para 2018, me veio esses textos à cabeça. Sem Neymar, não temos outro exemplo desse futebol admirado por Freyre, Millburn, Nelson, eu e você. Não sabemos, sequer, quem é o segundo melhor jogador brasileiro. Estamos diante de uma perda de identidade e de algumas características – como aconteceu em outros momentos históricos, é verdade, como 1974 e 1990, por exemplo – que, nem nos fazem jogar bonito, muito menos ganhar. No comando, um guerreiro admirável quando estava em campo, mas que representou, justamente, a mudança do futebol da Geração Canarinho, dos anos 1980, para o pragmático estilo de Sebastião Lazzaroni, em 1990. A “Era Dunga”, onde é melhor vencer do que dar espetáculo, hoje, não é nem uma coisa, nem outra. Se for para perder, que pelo menos perca jogando bonito.

O inglês Millburn morreu em outubro de 1988. Não teve tempo de escrever sobre a performance da Seleção Brasileira no segundo Mundial em casa, nem sobre os “7 a 1”. Vemos, hoje, menos meninos como aquele citado pelo atacante, dançando com laranjas pelas ruas. A “cruzada” brasileira em busca da volta ao topo do mundo, apresenta caminhos e interesses distintos, onde empresários, jovens atletas, dinheiro – muito dinheiro – estão presentes. E o torcedor, cada vez mais distante da equipe…
Um momento que pede uma reflexão: Fizesse você, tal como Millburn, teria algo a escrever admirado pela Seleção Brasileira de 2015?
Notas:
1 – “O brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro”. Em: RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 61.
2 – FREYRE, Gilberto. Football mulato. Jornal Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1938.