O delicioso livro de crônicas do historiador Luiz Antônio Simas “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias de várzea” é uma pérola contemporânea na literatura sobre futebol na minha humilde opinião.
O botafoguense Simas, ilustre cidadão carioca, frequentador de bares, rodas de samba, livrarias e outros espaços públicos da cidade é um notório ícone de resistência cultural na maltratada eterna capital do Brasil. Para mim é um “vagabundo acadêmico” que não se limita as amarras científicas e metodológicas nos seus livros e crônicas ultrapassando as fronteiras do construir conhecimento para os pares, transcendendo assim nossa costumeira chatice circular entre mestres e doutores. É também um “malandro professor” que cativa alunos, leitores, sambistas, jornalistas, boêmios pseudo-intelectuais e até alguns de verdade.
Não o conheço pessoalmente como muitos de vocês podem supor pelos contundentes elogios feitos, mas pelo espírito das suas crônicas, suas intervenções em programas de rádio, palestras e até no clássico documentário Geraldinos de Pedro Asberg, além do relato de amigos em comum, com certeza é alguém que eu gostaria de beber várias cervas geladas. É até provável que já estivemos sentados em alguma mesa próxima em bares da cidade, cruzamos pelos corredores do IFCS, em lançamentos na livraria Folha Seca do Digão, ou em rodas de sambas, talvez na própria Rua do Ouvidor.
Referência em crônicas sobre samba, a cidade e seus personagens, Simas incorporou no referido livro sua paixão pelo futebol extrapolando as fronteiras cariocas com textos curtos, mas intensos, informais repletos de informação, com épicas histórias de personagens banais e equipes “pequenas” segundo a grande mídia e a maior parte dos estudiosos do futebol no país. Ver mais sobre o autor e o livro na reportagem da Folha de São Paulo.
Entretanto a forma como o autor narra o nascimento de pitorescas-fantásticas equipes do futebol brasileiro como Sampaio Correia, Asa de Arapiraca, Central de Caruaru, Calouros do Ar, Tuna Luso, Colo-Colo, entre outras, além da trajetória de personagens como Juca Baleia, Leônidas da Selva, Francisco Carregal, Mário Vianna e o próprio Mauro Shampoo coloca tanto os escretes quanto os seres humanos no panteão sagrado do futebol brasileiro. Curiosas escalações, belos trechos de hino, jogadas fantásticas, excursões homéricas, a relação entre futebol, política e cultura nos rincões do país dão visibilidade histórica a times e indivíduos que estavam marginalizados no enquadramento da memória oficial do que seria o futebol brasileiro.
Ademais é possível perceber críticas pertinentes a mercantilização, midiatização e globalização do futebol nacional nas entrelinhas de diversas crônicas sem aquele tom solene e panfletário de alguns jornalistas engajados ou de importantes trabalhos acadêmicos. A crítica aparece leve, também se desmancha no ar, mas cumpre o mesmo papel fundamental de alertar para nocivas transformações estruturais que vem ocorrendo faz anos no futebol brasileiro no que diz respeito ao processo de transformação do clube em truste de empresários, o jogador em capital especulativo e o torcedor em cliente- prime.
É verdade que, se eu fosse analisar as crônicas estritamente do ponto de vista acadêmico, poderia questionar o caráter excessivamente nostálgico, uma aparente essencialização do que seria o genuíno futebol brasileiro na perpetuação do mito freyreano do “footbal-mulato”, ou até mesmo a ausência de referências. Mas obviamente não é esse o meu objetivo e nem foi essa a proposta do cronista Simas. Não foi um trabalho historiográfico mas sim uma obra literária de grande valor para se refletir sobre mitos, origens e representações sobre o futebol brasileiro que pode ter um alcance muito maior que muitas dissertações e teses.
Além disso, como torcedor da mesma geração, compartilho da nostalgia de Simas sobre o futebol dos anos 80 e 90, do Maraca do século passado, da mitificação de equipes de pelada de campos predominantemente de terra, como o citado Vila Cava de Nova Iguaçu, o Ajax do Aterro, o KY do IFCS, além da idolatria da seleção canarinho de 1982 e a paixão pelos jogos de botão sobre o qual o autor escreveu belas crônicas. Resgatei meu plantel e segue a imagem de meus botões abaixo.
Assim sendo, a simbólica obra louva de forma literária as raízes do futebol brasileiro. Neste livro aparece o “pereba”, o “carniceiro”, o “frangueiro”, o “torcedor “doente”, o “gordo”, o “derrotado”, enfim diversos personagens segregados no cotidiano das crônicas esportivas. Aparece também as potências futebolísticas que nunca fizeram parte do Clube dos 13 e raramente aparecem nos debates nas mesas esportivas nacionais, não estão presentes nas reuniões com a Rede Globo, pois necessitam de esforços individuais ou patrocínios locais para conseguirem sobreviver. Aparece enfim, uma outra representação do futebol brasileiro que não se retroalimenta apenas de celebridades, títulos e marketing esportivo mas de indivíduos comuns, paixão e Memória.