Os bastidores de partidas de futebol: relações que cresceram no afastamento social

Há uma crescente aproximação entre jogadores e torcedores conectados às redes sociais – em especial o Youtube, o Instagram e o Facebook. Nesse cenário, os vídeos dos bastidores das partidas dos clubes brasileiros têm sido prato cheio no consumo de informação clubística para os aficionados, principalmente com a caótica situação da pandemia, que afastou os fãs de seus ídolos.

 Desdobram-se, sobretudo nos últimos meses, mais e mais comentários, nas plataformas mencionadas, por parte de torcedores, com manifestações de apoios, críticas e, até mesmo, feedbacks positivos/negativos sobre o conteúdo que está sendo exposto nos vídeos de bastidores. Essas nem tão novas formas de interação floresceram diante da impossibilidade de os torcedores estarem nos estádios, apoiando seus clubes do coração. Mais um dos vários sintomas de uma pandemia que perdura e causa impactos claros também nos esportes.

Falta, assim, recordando o que diz o teórico Hans Ulrich Gumbrecht, a troca e a proximidade possibilitada pela simbiose dentro de um estádio, local que possui, segundo ele, uma “aura”, tornando-se “sagrado”. No estádio, é onde ocorre a performance do esporte, a presença, ou, ainda mais, a produção dela. Eis que a ferramenta comunicacional, que já vinha crescendo ano a ano, ganha novos contornos: sua função de aproximar os atores do futebol se alicerça, agora, numa urgência da produção de presença que necessariamente limita-se ao espaço virtual. Os já mencionados bastidores das partidas, gravados e editados pelos profissionais de comunicação dos clubes, tornaram-se os elos perdidos – e possíveis – num obrigatório relacionamento à distância.

Vale destacar que a exibição, pelos clubes, dos bastidores só se faz, em geral, nas ocasiões de vitórias. A exceção se dá quando ocorrem empates que carregam certo grau de dramaticidade; um empate que coloca o clube na liderança ou o livra da zona de rebaixamento, por exemplo.  

Essa fruição de espectadores e da audiência em geral se deu, pode-se dizer, desde os primeiros momentos de retorno da bola rolando no Brasil pandêmico, em junho de 2020. Juntou-se a esse caldeirão as polêmicas envolvendo alguns clubes e emissoras de tevê sobre direitos de transmissões de partidas. Alguns jogos – incluindo finais, vide o Fla-Flu do Campeonato Carioca – migraram para a transmissão no YouTube e levaram muitos torcedores aos canais oficiais dos clubes na plataforma, num engajamento superior a outros momentos.

O boom nos números de inscritos nas “tevês personalizadas” de cada instituição foi visível, principalmente se olharmos para o crescimento exponencial da taxa de seguidores no canal do Fluminense Football Club, por exemplo. O clube agora possui, com a sua “Flu TV”, mais de 600 mil inscritos no YouTube. Número seis vezes maior ao período anterior a toda essa trama que se desenrolou a partir da quarentena, na esteira de exibições ao vivo de jogos decisivos pela referida plataforma de vídeos.

É uma aproximação do torcedor, em outra esfera, com a marca, com o clube. Os departamentos de comunicação das marcas, responsáveis por essa relação, pareciam já perceber essa nova dinâmica bem antes. Está dentro de uma gama de estratégias de marketing, relacionamento e fidelização de seus públicos. A penetração dessas estratégias nos nichos encontrou, na pandemia, uma viabilidade ainda maior. E os bastidores de partidas tornaram-se essenciais na expansão do consumo do espetáculo.

Fazendo um recorte curto de uma edição do Campeonato Brasileiro para outra, num espaço de rodadas próximas, tomando o Fluminense como exemplo, nota-se a diferença de audiência. Na 35ª rodada do Brasileirão de 2019, no dia 29 de novembro de 2019, o vídeo dos bastidores da partida contra o Palmeiras, vencida pelo tricolor carioca por 1 a 0, soma – até o dia de produção deste texto, 08/02/2021 – pouco mais de 73 mil visualizações.

Já o vídeo dos bastidores da vitória sobre o Botafogo na 32ª rodada – bem próxima da rodada do primeiro caso – do Brasileirão 2020, lançado mais de um ano depois do exemplo comparativo, no dia 26 de janeiro de 2021, alcançou, em menos de um mês, quase o dobro do número dito alhures: 125 mil visualizações. Número que continua avançando a cada dia.

A manifestação do espectador aficionado

Tal importância pode ser notada pela leitura dos comentários em vídeos desse tipo. Pegando o exemplo de outro vídeo de bastidores de outra vitória do Fluminense, dessa vez sobre o Bahia por 1 a 0, na 34ª rodada do Brasileirão de 2020, conseguimos dimensionar o valor dado por parcela considerável da torcida do tricolor. Ela sintomatiza a relevância pungente; é quem sente e vivencia o impacto da distância de forma mais nítida, por ter sua presença barrada. Logo, a torcida é o ponto focal da estratégia diferenciada de aproximação que são os bastidores de partidas.

Há espaço, inclusive, para manifestações nessa relação. Alguns torcedores, por exemplo, cobram maior tempo para momentos que mostram o vestiário, a concentração nesse espaço. Estes fazem críticas, nas caixas de comentários dos vídeos inseridos no Youtube, cobrando justamente uma maior imersão nesse sentido, como nos exemplos abaixo:

Comentário de torcedor do Fluminense, no vídeo dos bastidores da vitória sobre o Bahia, com muitas curtidas. (Reprodução).
Comentário de outro torcedor do Fluminense, no mesmo vídeo dos bastidores da vitória sobre o Bahia, também com muitas curtidas. (Reprodução).

O propósito da ferramenta de comunicação fica explícito nestes comentários, que carregam, inclusive, reivindicação e feedback aos produtores. Ao que parece, a busca latente dos torcedores é, cada vez mais, o contato maior com seus ídolos, e isso parece estar sendo atenuado pelo contexto da pandemia.

Voltando a lembrar do que diz Gumbrecht, percebe-se uma possibilidade a mais de reencantamento secular que o esporte pode proporcionar com o novo cenário, ocasionado pelo aparente aumento da relevância de vídeos de bastidores de partidas em tempos de distanciamento social. Mais uma possibilidade numa realidade de desencantamento moderno, que vai permeando o tecido social a cada ano, e exacerba-se numa súbita pandemia.  

Indo um pouco mais na direção do teórico alemão, é em tal dinâmica que a gratidão pelo “herói” se manifesta nas expressões dos fãs do esporte, e as reações intensas e vagas não poderiam deixar de aparecer. Vagas – ele aponta –, pois, a princípio, ainda não há uma expectativa do interlocutor por uma resposta de seus ídolos. A resposta do ídolo com um agradecimento a possíveis elogios à sua performance é uma exceção para Gumbrecht. Mas esse novo cenário de muitas exceções pode também estar ressignificando essa possibilidade. Vamos pensar brevemente numa fala do jogador Felipe Melo, do Palmeiras.

Há um diálogo e uma nova dimensão de performance sendo construídos?

Pensando nesse processo de expansão na relação marca-torcedor, podemos lembrar de uma entrevista dada por Felipe Melo, jogador do Palmeiras, logo após o clube conquistar o título da Copa Libertadores, ainda no campo. Na entrevista, concedida à Fox Sports, o atleta já deixava subentendida a atenção e a importância que despendia aos vídeos de bastidores dos jogos, fazendo referência às suas falas ditas dentro de um futuro episódio no dispositivo que o replicava. Ele disse:

“Eu antes do jogo – na verdade não gosto de falar isso, se sair na TV Palmeiras, se colocarem lá, ótimo – mas vou falar hoje: Antes do jogo eu tava (no vestiário) procurando o que dizer para nossos atletas, e Deus me deu uma palavra (…)”, disse o atleta, citando diretamente a tevê personalizada de seu clube, mostrando uma preocupação com o que foi e com o que será veiculado por lá.

Continua sendo improvável que os heróis de epifanias temporais, que começam a se diluir no momento em que surgem, retribuam gratidões e elogios acalorados dos fãs do esporte, mas é notável que eles também sentem as novas dimensões de interação que a ferramenta de marketing vem proporcionando com sua consolidação no imaginário das torcidas. Estaria uma nova possibilidade de performance pelos atletas diante de câmeras que os miram fora do palco, na coxia do verdadeiro espetáculo?

Há espaço para respostas, diálogos, frases motivacionais inspiradoras, danças, brincadeiras com e sem a bola, e muitas outras coisas. A extensão da presença de um ídolo, que possibilita o vislumbre do cotidiano em ações espontâneas – ou não –, idênticas às de uma pessoa comum.

Nota-se clara relevância nessa ferramenta não tão nova. É interessante pensar sobre esse aumento de relevância num momento de não-presença das torcidas, um momento de relacionamento diferenciado, assim como perceber que as estratégias de engajamento, de alguns departamentos de comunicação de clubes, parecem estar cada vez mais alinhadas a isso. Os jogadores, pelo visto, também. A torcida anseia por mais vestiário, por mais minutos imersos no ambiente interno, na coxia do espetáculo. Por mais presença, materialidade. O conteúdo dos vídeos de bastidores de partidas recebe, como vimos, feedbacks para se enquadrarem em tais aspirações dos fãs de futebol. E, assim, o futebol – e tudo que permeia esse mágico esporte – continua nos mostrando que não é um fenômeno inalterável; ele está em constante mudança.

Fonte: Explosão Tricolor

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