Passado, presente e os novos ventos no futebol

Era 2011. 27 de julho. A data pode passar despercebida frente aos 90 minutos lendários que se sucederam ali. 

O camisa 11 do Santos arrancava pela esquerda do ataque com tanta facilidade que fazia seus marcadores parecerem cabras-cegas batendo cabeça e tropeçando em seus próprios passos. Era um pandemônio a cada vez que pegava na bola. Uma dessas vezes a memória tratou de guardar. De Léo para o camisa 11. 1,2,3 toques em curto espaço ainda na lateral esquerda e a marcação dupla de Léo Moura e Willams era transformada em pó. Passe para Borges, que abre a defesa atraindo um dos zagueiros adversários e devolve fazendo o pivô, deixando o camisa 11 em condição de um contra um com Ronaldo Angelim. O controle de bola e o drible eram sua especialidade. Por uma fração de segundo, o agarrão insistente de Renato Abreu decretaria o fim da trama santista. Mas, o camisa 11 era o mágico de um jogo cujo bruxo observava a somente alguns metros de distância. Ele tirou da cartola um truque de puro ilusionismo. Bola no pé direito em velocidade, não está mais, rola para o esquerdo, marcador para um lado, bola para o outro, meia-lua em Angelim, cavadinha em Felipe, bola na rede. Gol de Neymar.

Vibração na Vila, e melancolia na minha casa. As lágrimas copiosas que escorriam sobre o meu rosto encharcavam de sofrimento as listras vermelha e preta da minha camisa. Era a primeira vez que eu presenciava o meu time tomando um sonoro três a zero ainda aos 20 minutos do primeiro tempo. Só que também era a primeira vez que eu sentia o quanto um esporte pode ser cruel e apaixonante ao mesmo tempo, capaz de pisotear e menosprezar o coração, à medida que o aquece e o deixa mais leve. Mesmo tendo visto o final de Adriano Imperador e de Ronaldinho Gaúcho, nos meus recém-completados onze anos de vida, quem fazia eu me encantar pelo futebol era um moleque magrelo e ousado de 19 anos de idade.

Por dois anos, assistir Neymar jogar era um afago aos olhos curiosos. Mesmo criado como um “monstro”, o menino mágico transformava toda partida em um espetáculo à parte. Arrancadas, dribles e gols inacreditáveis saíam da imaginação geniosa de um garoto e eram produzidos com agilidade pelos seus pés toda quarta e domingo. Um verdadeiro showman.

Foto Fernando Dantas/Gazeta Press

Os anos se passaram, para Neymar e para quem o admirava, e o peso das escolhas foi se tornando cada vez mais preponderante a curto, médio e longo prazo – motivo que faz a vida adulta ser tão inquietante para todo mundo. Após ser o número dois, e às vezes o três, do trio de ataque mais letal deste século e virar o protagonista não-reconhecido de uma remontada pelo Barcelona na Champions League, o já adulto Neymar decide abraçar a ideia de ser a única estrela a brilhar no plantel, juntando-se ao PSG, clube que ele mesmo havia eliminado. A promessa era de encabeçar um time que lhe oferecesse todas as condições de brigar pela glória continental, ao passo que se colocaria como favorito natural dos títulos individuais. Um passo de ousadia, visto que o mais cômodo seria permanecer onde estava e continuar empilhando taças na Espanha ao lado de Messi, Suárez e Iniesta. 

Mas, o que aconteceu foi o desencontro entre as expectativas grandiosas a partir de uma escolha e a realidade nada séria do clube francês e do próprio craque brasileiro. Após ter seu nome ilustrado na Torre Eiffel e se cercar de “parças” dentro de campo, Neymar transforma o que deveria ser a estrela de um projeto em momentos de estrelismo, ao tentar impôr poder frente a Cavani, então maior artilheiro do PSG e ídolo da torcida. Entra em rota de colisão com os torcedores e com a diretoria ao vazar a informação de que queria deixar o time. Volta, decide jogos importantes e bate na trave do título da Super-Champions de 2020. Em fúria, esbravejou por não ter sido lembrado algumas posições acima no ranking de melhor jogador do mundo. Talvez tudo não passasse de um azar à francesa. O ano seguinte marcaria o fim do capítulo mais frustrante da sua carreira, mas de forma inexplicável aceita uma renovação que amarra o seu destino a mais quatro anos de turbulências na França. Tudo isso para, ao final, ser relegado novamente ao segundo posto no projeto e enfim ser chutado do clube por outro jogador cujo ego só não supera o gigantesco flop que foi a passagem de Neymar por Paris. 

Se antes o craque conseguia decidir partidas com uma dose de magia ao iludir seus adversários, em dado momento ele se tornou o seu próprio ilusionista, enganando-se profundamente quanto aos motivos que fazem um jogador permanecer no topo e que dividem esportistas comuns de atletas de alto-nível. Apesar de ser dono de uma habilidade rara dentro de campo, fora dele Neymar foi incapaz de driblar os rumos que acabariam mais tarde o tornando refém das próprias escolhas.

Hoje, doze anos depois daquele jogo memorável, o sentimento é de pura tristeza ao perceber que toda a paixão pelo futebol que um menino parecia pulsar acabou sendo inferior a sua busca por mais cifras milionárias que esse mesmo esporte é capaz de oferecer. A todos cabe refletir: o que será quando se perceber que ainda havia tempo para fazer mais do que não foi feito? Qual será a sentença de uma carreira na qual todas as expectativas iniciais de glórias e conquistas acabaram por fim se transformando em uma miragem em meio a um deserto de areia e muito dinheiro? 

Andando por São Gonçalo, na mesma semana do aceite de Neymar ao Al-Hilal, percebo crianças jogando bola em um campinho, três delas vestindo a camisa do Real Madrid. Coincidentemente, os três moleques usam o mesmo 20 nas costas. Era o antigo número do Vini Jr., cria da cidade, protagonista do Real e atualmente o maior craque do Brasil. De Vinícius, passando por Rodrygo e chegando até Endrick e Vitor Roque, o futebol nunca morre porque sempre haverá alguém para inspirar e ser inspirado, em um ciclo viciosamente intrigante, no qual o tempo é o grande juiz das escolhas tomadas por cada um. 

No futebol e na vida: o dinheiro oferece possibilidades, abre caminhos os quais permaneceriam fechados sem uma força financeira. Porém, ele não pode ser encarado como sinônimo de boas escolhas. Ao aceitar a proposta saudita, Neymar dá as costas para o sucesso que ainda poderia ter, na plenitude dos seus 31 anos. A boa notícia é que novos ventos sempre sopram no futebol. Mais e mais memórias afetivas serão criadas por novos moleques ousados que surgirão.

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