É bastante recorrente que sujeitos mais associados as lógicas conservadoras em nossa sociedade reiterem a afirmação, no mínimo equivocada, de que política e esportes não se misturam. O raciocínio que sustenta este tipo de argumento é o mesmo que afirma que não se pode discutir política nas escolas ou em outras instituições que deveriam, por sua natureza, ser “apolíticas”. Todos os conceitos normativos que ordenam os entendimentos nos esportes ou na escola, por exemplo, são resultado de disputas por significação que possuem um acordo extremamente pontual e limitado que nos permitem ler os entendimentos que possuem status de senso comum. Negar a participação e a disputa política nesse espaço é um esforço para naturalizar esses acordos tirando os de seu espaço de construído politicamente para transformá-los em conceitos naturalizados.
Desde a década de 1980, talvez mais explicitamente a partir da hegemonia das democracias representativas burguesas, os movimentos de política identitária têm ganhado destaque nas formas de organização das diferentes militâncias. Nas próximas linhas pretendo problematizar algumas das formas com que essa política identitária tem aparecido nas transmissões esportivas. Como as emissoras têm utilizado algumas identidades e de que maneira a representatividade já começa a produzir efeitos nestes espaços.
Com um ano de atraso os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020 foram realizados em Tóquio, mesmo que sem público. É lugar comum nas transmissões dos megaeventos esportivos a contratação de comentaristas especializados, quase sempre atletas ou ex-atletas, para ajudarem na transmissão esportiva, podendo estabelecer alguma informação mais qualificada de alguma modalidade ou traduzir para um público leigo ou para os jornalistas algum vocabulário específico dos praticantes. Para a transmissão dos Jogos Paralímpicos, dentro dessa perspectiva, foram convocados e convocadas paratletas e ex-paratletas que teriam essa função. Verônica Hipólito extrapolou, e muito, o que se espera desses comentaristas. A paratleta, medalhista no Rio em 2016, mostrou um conhecimento sobre os participantes e as modalidades que causaram fortíssimo constrangimento entre comentaristas consagrados que insistentemente repetem lugares comuns e indicam que uma equipe poderia melhorar seu desempenho a partir da entrada de um atleta lesionado… Minha impressão neste caso é de telespectador e me faltam elementos técnicos que atravessam as decisões das direções das emissoras, mas Verônica subiu a vara de qualidade das transmissões. É inaceitável que os demais comentaristas não estudem como ela e, o mais importante para meu argumento, é inaceitável que ela comente apenas jogos paralímpicos. Verônica foi brilhante por ter realizado um trabalho jornalístico de excelência, não por ser paratleta. Isso não é a exaltação da meritocracia, mas uma reclamação pela falta de estudo de outros profissionais com espaços midiáticos muito maiores.
Não são apenas paratletas que são chamados para comentar o paradesporto. Quando eclodem casos de racismo ou machismo, pessoas negras e mulheres são chamadas para opinar. Alguns dos especialistas convidados falam somente destes conteúdos. Isto gera um problema duplo. A partir dos processos de políticas identitárias se transformam sujeitos marcados como pertencentes as “minorias” como identitários enquanto outros não teriam identidade. Ou seja, as mulheres falariam de problemas de mulheres, mas os homens não falam dos problemas dos homens, falam da humanidade, falam de tudo. E aí aparece o segundo problema: eles falam de tudo, mas nesse tudo não se incluem violências contra essas chamadas “minorias”. Neste caso, essas violências não são um problema da humanidade, mas acabam sendo reportados como problemas identitários ou, o que seria ainda pior, problemas de identidade. O muito utilizado e pouco estudado conceito de “lugar de fala” reporta justamente essa dificuldade de quem está e de quem não está autorizado a falar sobre qual assunto.
As comentaristas mulheres no futebol jogado por homens trabalham com uma lógica inclusiva distinta. Ali elas estão autorizadas a falar sobre futebol, sem gênero. Mulheres, da mesma forma que os homens, são capazes de falar sobre qualquer assunto para os quais tenham se preparado. O mesmo vale para pessoas negras que possuem capacidade de discorrer sobre qualquer assunto para o qual estudaram e não somente para relatar suas vivências. Então não faria diferença se quem comenta é homem ou mulher, branco ou negro? Sim, segue fazendo diferença. A presença das mulheres obriga a um esforço reflexivo maior dos homens (ao menos deveria exigir). Machismo travestido em piadas começam a ser menos oportunos. Nosso chamado país do futebol por muito tempo excluiu as mulheres. Quando elas entram seja no campo, nos microfones e até na direção do futebol de mulheres da CBF (conduzidas graças a luta das mulheres no mandato de um presidente afastado por acusação de assédio sexual), inevitavelmente elas apresentam novas pautas. E isso fará o país do futebol ser mais país do futebol. Um país que exclui as mulheres não é um país. Quando muito é a metade de um país. Acredito que se tivéssemos mais mulheres ou homens não brancos em nossas transmissões esportivas ou mesas redondas, seria mais difícil ouvir ridículos argumentos que associam o mal desempenho esportivo com o esforço estético para a manutenção de um penteado afro.
É a partir da ampliação da participação de diferentes sujeitos atravessados por diferentes marcadores identitários com o aumento de representatividade que poderemos colocar a disputa política no centro dos nossos esportes e das nossas transmissões esportivas. É lugar comum (em alguns lugares de forma equivocada) entender que os esportes em geral e, no caso sul-americano, o futebol em específico, como microcosmos ou espelho da sociedade (eu sigo preferindo pensá-lo como integrado com). Ampliarmos a participação de atores e desnaturalizarmos a posição normativa dos homens cisgênero brancos, heterossexuais é ampliar a democracia. Poderia ser um catalisador para qualificarmos as discussões desses mesmos problemas em outros espaços de nossa cultura.