Pesquisando emoções no futebol

Por Fábio Daniel Rios

Como se trata de minha primeira contribuição ao blog do LEME, creio que seja oportuno começar com uma breve apresentação, um resumo de meu perfil como pesquisador. Sou doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ e venho me dedicando principalmente à área da antropologia das emoções, investigando objetos relacionados ao universo cultural do futebol.

 Meu interesse tem sido, sobretudo, a experiência afetiva de torcedores e torcedoras, que podem ser considerados como o lócus da emoção neste domínio. Isso porque, se é verdade que as emoções permeiam fortemente as experiências de todos os agentes envolvidos nesta área, aos torcedores não só é permitido, como também esperado, que se comportem de modo apaixonado, aproximando-se muitas vezes dos limites da loucura ou desrazão. 

Sendo assim, em minha dissertação (2014), abordei a relação entre futebol, emoção e masculinidade a partir das memórias de torcedores dos quatro “grandes” do Rio de Janeiro. Memórias que, a um só tempo, são coletivas e individuais. Por um lado, constroem-se a partir de quadros, marcos ou referências que são definidos e compartilhados coletivamente, produzem a sensação de pertencimento a algo maior e, assim, conferem um pouco de sentido à vida, livrando-nos do sentimento de solidão sempre iminente, porque inerente ao individualismo na modernidade ocidental. 

Mas, também por sermos individualistas, são as peculiaridades das nossas lembranças de cada gol, cada título, cada vitória ou derrota que emprestam um colorido especial a esses eventos, transformando-os em experiências pessoais significativas, que passam a fazer parte daquilo que somos.

Fonte da imagem: Vascaíno.net

Embora seja ainda um universo hegemonicamente masculino (ou justamente por isso), o futebol franqueia aos homens uma vivência afetiva que lhes é vedada em outros contextos, por serem as emoções culturalmente definidas como um atributo feminino, assumindo conotações negativas ligadas às noções de excesso e descontrole (Abu-Lughod e Lutz, 1990). 

Mas não seriam justamente essas as qualidades que compõem o tipo ideal do “torcedor apaixonado”, que canta, vibra, berra e chora, sendo capaz de realizar loucuras e sacrifícios por seu “clube do coração”? Tipicamente, o sentimento dos torcedores pelos clubes é definido em termos de amor, paixão e fidelidade, em conformidade com o ideário romântico que serve de base à formatação cultural dessa relação (Damo, 2002).

Em minha tese (2018), abordei a relação dos torcedores do C.R. do Flamengo com o Novo Maracanã, buscando entender como vinham se relacionando com o novo espaço produzido pela reforma de arenização do estádio, justificada pela realização da Copa FIFA de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Com essa reforma, além das profundas mudanças estruturais promovidas, observamos também o avanço de um processo de elitização e domesticação do público, visando atender aos novos padrões de conforto e segurança estipulados internacionalmente. 

Estaríamos diante de um processo civilizador, no sentido eliasiano de contenção das emoções (1992), que colocaria em xeque a importância das vivências afetivas historicamente tão valorizadas na “cultura do futebol”? 

Em minhas observações de campo, pude observar uma série de “desrespeitos” às novas regras estabelecidas, que podem ser entendidos como formas variadas de resistência por parte dos torcedores. Já em seus depoimentos, eles procuraram distinguir-se como “torcedores de verdade” com base na efusividade de suas performances corporais e emocionais nas arquibancadas, em contraste com a alegada frieza, passividade e indiferença do novo público.  

Na visão dos entrevistados, o “verdadeiro torcedor” é aquele que vai ao estádio com frequência para apoiar o time e se comporta de modo efusivo, cantando e vibrando o tempo todo como forma de participar ativamente, influenciando o resultado da partida. Já o novo público seria composto por turistas, que vão ao estádio apenas quando o time está bem e se limitam a assistir aos jogos sentados, tirando fotos para postar nas redes sociais. Trata-se, portanto, de uma hierarquização que tem como base os diferentes níveis de “engajamento emocional” dedicados ao clube.

Fonte da imagem: Clube de Regatas do Flamengo.

O sentimento pelo Flamengo foi inicialmente caracterizado como “inexplicável” ou “imensurável”, definindo-se posteriormente pelas noções de amor, paixão e fidelidade. Mas para melhor qualificar esse afeto, os torcedores enumeraram uma série de práticas que atestariam seu nível elevado de engajamento, especialmente a frequência ao estádio, a realização de loucuras e sacrifícios, a compra de produtos do clube e o fato de serem sócios-torcedores. 

Esses dois últimos itens me chamaram a atenção, por consistirem em formas “mercadológicas” de relação com o clube, que se manifestam através do consumo, por intermédio do dinheiro. 

Os programas de sócios-torcedores vêm se consolidando como um novo modelo associativo no Brasil, uma fonte alternativa de receitas, e funcionam segundo a lógica do mercado, oferecendo vantagens e benefícios em troca do pagamento de mensalidades, sendo maiores os benefícios para aqueles que contratam os planos mais caros – ou seja, teriam um caráter elitista ou excludente. 

Ao lado do Estatuto do torcedor, da arenização dos estádios e da conversão dos clubes em empresas, representariam o avanço da lógica de mercado no futebol, levando à conversão dos torcedores em consumidores, em detrimento de seu laço afetivo com os clubes. 

Em minha pesquisa, encontrei resultados que contestam esse diagnóstico. Ao apontarem o desejo de ajudar o clube como principal motivação para terem se tornado sócios-torcedores, os entrevistados rechaçavam sua qualificação como meros consumidores, reforçando que sua relação com o clube se daria com base nas lógicas da dádiva e dos afetos. 

Minimizando as vantagens recebidas, em prol da ajuda ao clube como motivação primeira, caracterizavam a assimetria dessa troca como um sinal de abnegação e desapego, configurando, assim, uma nova forma de sacrifício. 

Teríamos aí, portanto, uma combinação especial entre emoção e mercado no mundo do futebol, uma reapropriação de instrumentos mercadológicos, ressignificados como meios de expressão da paixão dos torcedores. 

Tais resultados indicam a necessidade de uma visão mais nuançada sobre a relação entre consumo e afeto na experiência de sócios-torcedores (ou dos torcedores, de modo geral), o que venho buscando construir agora em meu projeto de pós-doutorado, como bolsista de PDJ do CNPq. Sigo, assim, investigando qual seria o lugar destinado às emoções na chamada “nova economia do futebol”. Mas esse é um assunto para minhas próximas contribuições. Saudações!

Referências bibliográficas

ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine. Language and the politics of emotion. New York: Cambridge University Press, 1990. 

DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

RIOS, Fábio Daniel. Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores. 2014. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ______. Os torcedores e o Novo Maracanã: emoção e espaço nas arenas esportivas contemporâneas. 2018. 276f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Deixe uma resposta