Reflexões iniciais sobre uma possível suspeição do jogo a partir das “bets”

Foi um dos lances mais incríveis do ano no futebol brasileiro. Um gol de goleiro, de bicicleta, aos 53 minutos do segundo tempo, que provocou mudanças inesperadas na tabela de classificação de um dos campeonatos mais ingratos e difíceis do país. Um lance daqueles que dialoga com o inimaginável, que é digno de provocar arrepios, emoções e assombros de todo o tipo, de arrebatar os apaixonados por futebol que se empolgam com o imponderável do jogo.

Ao bem da verdade, vá lá, deve ter acontecido tudo isso com uma parcela dos torcedores, claro, mas houve também um fenômeno que nos últimos tempos vem me chamando a atenção e se tornando cada vez mais comum: a descrença coletiva que o futebol vai sendo tomado pouco a pouco desde que as empresas de apostas invadiram o contexto futebolístico brasileiro.

– Certeza de que isso só pode ser coisa de “bet” – foi a frase que ouvi e li de muitos torcedores nas horas que se seguiram ao ocorrido, numa clara referência às casas de apostas.

Bem, antes de prosseguir, cabe uma rápida contextualização.

Na tarde do domingo, 21 de julho de 2024, nada menos do que 16 jogos simultâneos foram realizados pela Série D do Campeonato Brasileiro, com o objetivo de definir os últimos classificados e, ademais, as classificações finais de cada clube na primeira fase da competição nacional.

Era a última rodada da primeira fase da Série D, que reunia oito grupos com oito clubes em cada, de forma que 64 equipes disputavam 32 vagas na próxima fase, que a partir daí passa a acontecer no sistema de mata-mata. Assim, metade dos jogos já tinha acontecido no sábado (20) e a outra metade aconteceria no domingo (21).

Dos oito grupos, no entanto, gostaria de me apegar ao A3, que era composto por três clubes potiguares, três cearenses e dois paraibanos.

A situação de momento, antes da última rodada, era a seguinte:

Treze-PB, Iguatu-CE e América-RN já estavam classificados. Maracanã-CE e Potiguar-RN já estavam eliminados. Sousa-PB com 18 pontos, Atlético-CE com 17 pontos e Santa Cruz-RN com 16 pontos lutavam pela última vaga na próxima fase.

O Santa Cruz-RN, ademais, levou de 2 a 0 do Treze-PB e estava eliminado. O Sousa-PB perdeu de 1 a 0 do Iguatu, mas vinha sendo beneficiado com a derrota de momento do Atlético-CE, que perdia por 1 a 0 do lanterna Potiguar-RN e seguia jogando acréscimos mais longo que os demais.

Até que, aos 53 minutos do segundo tempo, a magia aconteceu.

Numa pressão crescente dos jogadores cearenses, na casa dos rivais, todo o time do Atlético-CE foi para o ataque para aquele que seria o último escanteio do jogo. Todos, inclusive o goleiro John Wilker. Ele tentou uma primeira cabeçada, sem sucesso, mas insistiu em sua posição avançada e depois de uma confusão na área acertou uma daquelas bicicletas clássicas que só parou dentro do gol.

Gol de empate no jogo, mas também de classificação do Atlético-CE, de eliminação do Sousa-PB, de consagração de John Wilker como herói improvável. As duas equipes ficaram empatadas em pontos e número de vitórias e os cearenses só prevaleceram diante dos paraibanos no número de gols pró, terceiro dos critérios de desempate.

Mesmo assim, apesar de todos os ingredientes maravilhosos que podem embalar cronistas, poetas e torcedores, não foram poucos os que desistiram de tudo isso e recorreram à tese de que “isso só pode ser coisa de ‘bet’”.

Entenda. Não existe absolutamente nenhuma evidência de irregularidade. E dificilmente alguma combinação de resultado passaria por algo tão absurdamente difícil de se realizar. De forma que, me parece, é muito possível que foi mesmo apenas mais um daqueles lances inacreditáveis que tornam o futebol tão apaixonante. Mas é justo isso o que preocupa aqui.

As apostas, acompanhadas de uma série de notícias mais recentes sobre operações policiais contra esquemas de combinação de resultados (vide o caso da tal Operação Penalidade Máxima, do Ministério Público de Goiás, que investigou clubes e jogadores das séries A e B), parecem ter algum nível de potencial de afetar as relações torcedoras sobre o torcer e o jogar.

Uma crescente suspeição que no futuro pode provocar uma série de modificações de dinâmicas, performances, relações do torcedor com o futebol.

Claro, ainda é cedo para qualquer tipo de conclusão, e esse texto não se pretende a isso. É mesmo apenas uma reflexão inicial. Para acompanhamento cotidiano e revisita futura num momento em que mais dados tornem possível uma análise mais amiúde sobre esse fenômeno.

 

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