Seis anos após escândalo em que manchou o futebol, a Fifa mudou?

“Vou lutar com todas as minhas forças para que ela seja aprovada”. Em 1999, o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, declarou seu apoio à proposta de realização da Copa do Mundo de futebol masculino a cada dois anos, e não mais em quatro. Blatter é hoje carta fora do baralho na entidade, mas, duas décadas depois, essa possibilidade volta à tona.

A Fifa vai elaborar um novo estudo de viabilidade sobre a realização do torneio a cada dois anos. Não há prazo para o documento ser concluído. A autorização para o início desse estudo foi dada à administração da Fifa no último dia 21 pelo Congresso anual da entidade – 166 associações nacionais de futebol votaram a favor e 22 votaram contra.

Em 1974, quando assumiu a presidência da FIFA, João Havelange cumpriu a promessa de campanha e expandiu o número de participantes da Copa do Mundo, de 16 até então para 24, a partir do mundial de 1982. Eram tempos de descolonização na África e na Ásia, e os impérios europeus, sobretudo o inglês e o francês, já não eram capazes de deter movimentos de libertação nacional que geraram, entre 1955 e 1970, quarenta novos países. Mais que proclamar a independência, esses novos Estados precisavam de reconhecimento da comunidade internacional, em especial de três instituições e entidades: a Organização das Nações Unidas (ONU), pela influência geopolítica, e a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional (COI), organizadores dos maiores eventos esportivos do planeta: a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, respectivamente.

Novas vagas no mundial de futebol foram destinadas para seleções desses dois continentes, o que colaborou para a autoafirmação dessas nações recém-emancipadas. No entanto, a solidariedade política não era o objetivo principal da entidade máxima do futebol mundial, e sim uma estratégia. Havelange e membros do Comitê Executivo deram o passo inicial para a engrenagem de corrupção, clientelismo e perpetuação no poder fortemente abalada em 2015, com a investigação conduzida pelo FBI e pela Justiça da Suíça, mas que continua de pé na Fifa. Cumprindo também uma promessa de campanha, o atual presidente Gianni Infantino, aumentou para 48 as seleções classificadas para a Copa do Mundo a partir de 2026. Cogitar agora transformar o torneio em algo mais frequente no calendário mundial é a nova fase do “Padrão Fifa”, que maltrata um patrimônio da humanidade e o seu clímax, em prol de interesses individuais.

Após expandir Copa do Mundo masculina de 32 para 48 seleções, Gianni Infantino, presidente da Fifa, analisa realizar torneio a cada dois anos. 
Foto: Arnd Wiegmann / Reuters

Com essa expansão, a FIFA pretende lucrar ainda mais com a venda de ingressos e de direitos de transmissão, além da valorização de contratos de patrocínio. No entanto, a expansão e a articulação global de movimentos e ativistas contra o modelo suntuoso de organização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos têm mostrado a falácia do legado desses eventos, influenciando governos quanto à decisão de se candidatar para sediar tais eventos.

Fontes: Comitês organizadores das Copas de 2010 e 2018, e Tribunal de Contas da União (TCU)
Fonte: Fifa

O Comitê Olímpico Internacional (COI) já entendeu o recado. Em tempos de baixo crescimento econômico mundial, de iniciativas ambientalmente sustentáveis e de contestação aos custos dos megaeventos esportivos, a entidade reformulou, em 2014, suas exigências quanto à organização dos Jogos Olímpicos, as tornou menos rígidas, priorizando candidaturas de cidades onde já existam instalações prontas e infraestrutura sem necessidade de grandes e caros ajustes.

Na contramão do mundo, porém, está a Fifa, ao cogitar realizar a cada dois anos um evento sustentável apenas para a entidade. Não haveria problema algum em relação ao crescimento dos lucros da Fifa com a Copa do Mundo masculina se eles fossem investidos no fortalecimento das categorias de base, do futebol feminino e da estrutura de treinamento em diversos países, sobretudo os mais pobres. Mas a realidade envolve o envio de dinheiro para dirigentes de confederações continentais e nacionais que não é revertido para o fortalecimento de clubes, campeonatos e para a inclusão social através do esporte. Vão para os bolsos alheios, sem fiscalização e punição pelos líderes da entidade máxima do futebol, que, em troca, recebem votos para a permanência no poder em eleições presidenciais. A Copa do Mundo a cada dois anos é a nova moeda de troca, em que as federações ganhariam maior exposição e dinheiro no maior torneio de futebol do mundo acontecendo de forma mais rotineira.

Foi essa estrutura que, ao se locupletar a um nível de ganância sem precedentes na história do futebol, levou à situação atual de penúria na Fifa. Há exatos seis anos, em 27 de maio de 2015, dirigentes da entidade eram presos em um hotel de Zurique, na Suíça, onde participavam do congresso que elegeria o novo presidente da entidade. Cartolas acusados de venderem seus votos para o Qatar ganhar a sede da Copa do Mundo de 2022, aquela em que paquistaneses, nepaleses e indianos constroem estádios climatizados no calor do deserto e em condições análogas à escravidão. Tudo sob o silêncio da entidade.

Desde então, os prejuízos se acumulam nos balanços financeiros da Fifa. Déficit de 122 milhões de dólares em 2015; 369 milhões de dólares em 2016; 1 bilhão de dólares em 2018; 683 milhões de dólares em 2020, sob efeitos da pandemia de Covid-19.

Em 1999, a proposta de organizar a Copa do Mundo a cada dois anos não foi adiante. Resgatá-la duas décadas depois mostra que a Fifa não mudou. A necessidade fala mais alto e as lições recentes da história já viraram uma memória a ser esquecida.

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