Tempo, escolhas e lembranças: essas são algumas palavras que tentam definir o que é torcer para o Botafogo de Futebol e Regatas. A quase interminável espera para gritar “é campeão” a plenos pulmões é fato presente em algumas épocas do clube. Cada escolhido, das gerações mais velhas às mais novas, foi apaixonadamente paciente com as alegrias que poderia viver assistindo ao futebol. Nós, torcedores brasileiros, somos muito adeptos do “pra ontem” ou “pra hoje”, mas a pressa e a cobrança por vitórias ou grandes conquistas nem sempre é atendida, pois cada instituição deste esporte vê o tempo passar de forma diferente. Alguns sofrimentos duram mais, outros menos, e a pior coisa que fazemos é olhar a grama do time vizinho, assistir aos rivais colhendo os frutos de um bom trabalho, enquanto nosso pasto pode enfrentar duras e duradouras geadas. É fácil gostar de assistir e ser feliz com o futebol? Depende.

Vitor Silva/Botafogo
Para mim é fascinante como histórias de vida, alegres ou tristes, cruzam com paixões as quais não temos controle sobre o destino delas. E a pergunta que fica para os mais incrédulos, fãs de resultados e compadecidos aos adversários, esses nem sempre tão vitoriosos, é: por quê? Por que torcer para o time X se o Y é muito melhor, vira e mexe ganha títulos e tem muito mais torcedores e audiência? Por que torcer para o time de uma cidade pequena se o da capital do estado tem mais visibilidade? Neste esporte, palavras ao vento não são em vão, mas sim levadas por ele, como sementes à procura de mentes férteis que passam pela escolha de um time para chamar de seu. Alguns são mais afortunados, outros nem tanto, já que nem sempre a semente cairá no melhor gramado, mas calma, a passagem do tempo permite mudanças. Neste texto, dividido em dois capítulos, você entenderá como essas palavras fazem parte da essência do Time da Estrela Solitária. Não espere pela “imparcialidade”, aqui estão as palavras de um torcedor, aqui tem jogo limpo, o tão pedido “fair-play” dos últimos meses, de um modo diferente. Este início é intelectualmente honesto, sem pilantragem de opinião disfarçada de isenção, e o melhor de tudo: você nem precisa assinar por isso. Siga a leitura.
CAPÍTULO 1: Tempo
As definições para o “tempo” são várias: duração relativa das coisas que cria no ser humano a ideia de presente, passado e futuro; certo período da vida que se distingue dos outros; oportunidade para a realização de alguma coisa; e conjunto de condições meteorológicas. O clube alvinegro foi vítima do tempo como poucos, mas neste ano fez ótimo uso dele, feito ímpar na história do futebol.
Na “Persistência da Memória”¹, obra de Salvador Dalí, os relógios derretidos são como a Estrela Solitária: maltratada pelos insetos que a impediram de funcionar (no caso do objeto) ou reluzir (no caso do corpo celeste) por muitos anos. O relógio ainda estava lá, assim como as formigas e as moscas, mostrando como o tempo é cruel. O título da obra do artista espanhol funciona como a nostalgia, pois às vezes temos carinho por épocas que sequer vivemos. Eu tenho saudades dos “tempos modernos”² e paradoxalmente ortodoxos de Carlito, ex-jogador, treinador e presidente do Botafogo, que transformou o melhor amigo do homem na mascote da instituição na década de 40, o famoso Biriba urinava nas chuteiras dos jogadores antes de cada partida e é claro que isso trouxe à sede de General Severiano o título do Campeonato Carioca invicto de 1948. Naqueles tempos o relógio ainda funcionava, mesmo que eu e você não estivéssemos lá para ver o tempo passar.
A persistência da memória também evoca traumas difíceis de esquecer, cicatrizes profundas que nos trazem instantes dolorosos. No passado em preto e branco também tivemos um “grande ditador”³ chamado Charles Borer na presidência do clube. O dito-cujo serviu ao Sistema Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem da ditadura civil-militar no Brasil. O time do boêmio e temperamental Heleno de Freitas, do liberto anjo com asas e nome de ave Garrincha e da rebeldia de Afonsinho e Paulo Cézar Caju se encontrou preso ao militarismo sofrido por outros clubes e pela própria seleção brasileira. O grito de “é campeão” foi censurado, fomos calados. Passamos pelo infortúnio da canetada de Pink Floyd na canção “Time”?: aguentamos firme enquanto sentimos um desespero silencioso. Talvez isso fosse o antigo “Botafogo Way”. Nesse longa-metragem mais que centenário – desde o aventurado e marcante Carlito ao terror do “cinema mudo” do pior dos Charles que, diferente de Chaplin, tampouco mereceu algum apelido – o futuro do clube foi aprisionado numa solitária zero estrelas por mais de duas décadas.
O movimento artístico do surrealismo é trazido para o campo de futebol quando pensamos no Botafogo, porque há coisas que só acontecem com ele. Como pode um clube usar o substantivo “tempo” com tanta sabedoria e com tantas coincidências entre tantas épocas diferentes? Em 2024, a ideia de presente, passado e futuro foi exposta na nova linha de uniformes para esta temporada: a camisa preta, “forjada no fogo”, representando o presente, a tradicional preta e branca com o dever de “honrar o passado” e a branca, como um livro em branco com páginas a serem escritas, ressignifica o futuro que promete ser Glorioso – separando sua promissora e vitoriosa era daquelas mais temíveis, agora enterradas pela esperança e otimismo. O futebol é cíclico, mas a rapidez com a qual as coisas acontecem tendem a ser surreais, ainda mais da forma como tudo se desenrolou. A oportunidade, o “all-in” do clube-empresa e saída do modelo associativo surgiram, e quanta coisa foi feita em três temporadas…
As dúvidas em relação à mudança no modelo de gestão do clube estiveram muito presentes na imprensa esportiva e no pensamento do botafoguense mais pessimista – pleonasmo, hoje, já superado. A última chance para se reerguer, sem depender da incapacidade dos antigos “profissionais”, estava na mesa. O futebol do Botafogo precisava ter a sorte de encontrar em seu caminho o que raramente veio ao seu encontro quando gerido pelo modelo associativo: um administrador/gestor/presidente competente. Há quem compare John Textor à figura do bicheiro Emil Pinheiro – investidor que trouxe jogadores ao Botafogo no final dos anos 80 e início da década de 90. Outros viajam, não no sentido pejorativo da palavra ou expressão, claro, até chegarem aos relacionamentos do norte-americano com oligarcas russos, é o fim da Guerra Fria! Seja para desmerecer, provocar ou, oportunamente, não deixar o alvinegro feliz após cada triunfo importante neste ano, os troféus conquistados ofuscam qualquer tentativa pífia, patética e “pragmática” em desestabilizar, ao menos, o moral do torcedor, já que o mental dos jogadores estava em dia. Estar invicto por 16 partidas no campeonato nacional, jogar a Libertadores e eliminar, na época, os atuais campeões do Brasileirão e da Copa do Brasil e tricampeões do torneio continental, golear um pentacampeão da América e punir, dentro de campo, a arruaça que fizeram pelas ruas da nossa cidade não me parecem motivos de um elenco emocionalmente abalado, muito menos quando terminam os clássicos válidos pelos pontos corridos de forma invicta. Nunca duvide da capacidade do Botafogo em dar uma goleada.
Foram 29 anos de espera, dos quais fiz parte de 17 deles. Cheguei quase à maioridade como um torcedor apaixonado para comemorar um grande título pela primeira vez, foi angustiante. Imagine para as gerações anteriores, imagine pra quem, neste plano, não conseguiu presenciar a história diante dos olhos. Nossas retinas registraram uma das melhores partes deste glorioso longa-metragem, que tendia a ser melancólico, de novo, na grande final da Copa Libertadores da América, o “quase” acabou bem quase veio, dando início ao clímax desse arco de três temporadas. E em 29 segundos, quase o volante Gregore pôs tudo a perder com uma correta e infantil expulsão após solar a cabeça de Fausto Vera, do Clube Atlético Mineiro. Ó tempo-rei?, Gil! Ali eu pensei que o término dos 29 anos em jejum podia estar por um segundo, e tivemos que jogar por mais de 100 minutos para que toda a luta não fosse em vão. O ponteiro apontou para as sete. O do relógio? Não. O ponteiro dos anos 50 e 60, onde quer que estivesse, era o facho de luz que regeu a mística dos camisas 7 na grande decisão. Mané Garrincha, o driblador. Jairzinho, o artilheiro. Maurício, o salvador. Túlio, o goleador. Luiz Henrique, o libertador, abriu o placar em Buenos Aires. “Telles campeão” tem 13 letras. O número da sorte de Zagallo, que vestiu a camisa de Loco Abreu num pênalti decisivo, encontrou na marca da cal mais uma coincidência, mais um gol do Botafogo. Tu, em campo, parecias tantos, no entanto, que encanto! Eras um só, Júnior Santos. Com licença poética a Armando Nogueira, preciso falar do jogador que começou e terminou a jornada do herói, a monumental epopeia alvinegra rumo à Glória Eterna. Eras apenas um, mas foram três gols do Botafogo.
Você, torcedor botafoguense – ou apenas um apreciador do bom futebol – viu John seguir o belo legado de goleiros deixado por Manga, Wagner e Jefferson. Viu Vitinho e Mateo Ponte atuarem como Perivaldo, Josimar e Wilson Goiano. Presenciou os zagueiros Bastos e Barboza serem técnicos ou raçudos como eram Mauro Galvão e Joel Carli. Viu uma “coletânea” de laterais esquerdos formada por Alex Telles, Marçal, Cuiabano e Hugo honrarem a “enciclopédia do futebol” Nilton Santos. Testemunhou Marlon Freitas ser líder e vibrante como era Heleno, e Gregore ser combatente como Sandro Barbosa. Desfrutou dos talentos de Thiago Almada e Jefferson Savarino, senhores soberanos do meio campo, como eram Gérson Canhotinha de Ouro ou o nosso prezado amigo Afonsinho?. Teve a honra de assistir a Luiz Henrique, com a mística camisa 7, fazer de manés os adversários driblados, como Garrincha também fez. Na artilharia, você percebeu que Tiquinho Soares e Igor Jesus mostraram ser centroavantes maravilhosos como Túlio era, sendo o primeiro muito importante na classificação para essa Libertadores, e outro fundamental nas fases eliminatórias. E para fechar, reunindo todas as condições meteorológicas possíveis, vimos o raio Júnior Santos cair dez vezes na América do Sul e reinar com a artilharia da competição, assim como outro campeão da América, o furacão Jairzinho como goleador máximo na Copa do Mundo de 1970. A geada e os tempos de folhas secas, não aquelas cobradas por Didi, mas as que indicavam a passagem do outono para o inverno, terminaram. Você não hiberna mais, botafoguense, você despertou. É hora de ver sua estrela brilhar no Brasil e nas Américas, afinal… é tempo de Botafogo!
Notas e Referências:
¹ Persistência da Memória – Salvador Dalí
² Tempos Modernos – Charles Chaplin