Transmissões televisivas e a elitização do sofá de casa

Reprodução: Internet

Desde a virada do século XX para o século XXI é possível perceber a estruturação de um processo de elitização do público nos estádios brasileiros, por meio do aumento nos valores dos ingressos e da busca por uma disciplinarização dos comportamentos esperados pelos torcedores nas arquibancadas (GAFFNEY, 2004). Amparados por uma noção do futebol cada vez mais atrelada à mercadoria e a espetacularização, os clubes brasileiros, bem como as empresas promotoras de eventos ligados ao esporte procuraram transformar os estádios em espaços voltados para o consumo e entretenimento. Lojas, alimentação, experiências no campo de jogo, e tudo mais que possa ser explorado comercialmente são feitos tendo a partida como fio condutor (HOLZMEISTER, 2005).

O processo de elitização dos estádios se aprofunda no Brasil a partir do fim da primeira década do século XXI, quando motivados pela promoção da Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016) passam a ser reformados ou construídos novos estádios que materializaram o novo projeto de torcedor/fã e arena de consumo esportivo.

A construção ou remodelamento desses estádios atrelados a uma nova forma de torcer e consumir constitui o processo de arenização na qual as praças esportivas passam a ser pensadas não mais a partir daqueles que frequentam – a torcida- mas sim das exigências das empresas consumidoras/patrocinadoras e dos indivíduos que pretendem desfrutar de um entretenimento. O estádio-nação, ou seja, o espaço de representação da identidade social dá lugar ao estádio-shopping, local estritamente comercial (MARCELLINO, 2013).

O avanço dessa realidade de elitização, na qual a arenização é sua característica mais atual acabou por paulatinamente afastar grande parte das camadas populares dos estádios, mas também parte da classe média intitulada atualmente como “nova classe C”. A principal razão para esse afastamento está nos altos custos dos ingressos que acabam por alijar os mais pobres do acesso ao estádio.

Tendo seu acesso dificultado e/ou impedido, essas classes sociais encontraram nas transmissões televisivas um meio de continuar acompanhando seus clubes, mesmo que à distância. Para a maioria por meio da “televisão aberta” e para uma parcela, principalmente da nova classe C, também por meio da “televisão fechada”. Se o estádio de futebol cada dia mais estava “fechado” para esses grupos, pelo menos as transmissões televisivas ajudavam a mitigar os efeitos da desigualdade de acesso as partidas. Esse fato que já havia sido observado no processo de elitização do futebol inglês como evidenciou Alvito (2014).

No Brasil o televisionamento das partidas se difundiu no final da década de 1980, quando mais de 70% dos lares do país possuíam aparelhos televisores (BOLAÑO,1988). Durante o período entre 1980 e 2020 pôde-se perceber que o avanço das transmissões foi feito através de um controle cada vez maior da Rede Globo e suas afiliadas, que passaram a ter o direito de transmissão dos principais campeonatos esportivos tais como: Estaduais, Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores, Copa do Nordeste, entre outros. Nesse caminho passou também a monopolizar a expertise no processo de produção técnica dos jogos e consolidou-se como a “dona” do futebol brasileiro ofertando nos meios de semana e finais de semana partidas na televisão aberta.

Nos anos de 1990 com a chegada dos canais pagos da televisão fechada, a oferta de transmissão de jogos aumentou com a introdução de canais esportivos, sendo que nos anos 2000 ocorreu a chegada da ESPN e SPORTV à grade de programação, bem como a oferta de pacotes de transmissão completa como o pay-per-view. A existência dessa oferta de canais pagos possibilitou a determinada parcela da população, principalmente da classe C, acompanhar todos os jogos de futebol do seu time a um custo inferior do que aquele gasto no valor dos ingressos.

O monopólio da Rede Globo nessas transmissões abertas e fechadas permitia aos torcedores terem acesso a todas as partidas (do seu time e dos adversários) adquirindo somente um produto, a saber o pay-per-view (SANTOS, 2013). No entanto, nos últimos anos podemos perceber mudanças na dinâmica das transmissões televisivas com o aparecimento de novas plataformas de comunicação com destaque para o serviço de streaming, além do interesse de novos players na transmissão das partidas devido o aumento do potencial comercial delas.

Entre os novos interessados nas transmissões das partidas temos emissoras tradicionais como Bandeirantes e SBT, mas também novos atores como é o caso do Facebook, da Conmebol e dos próprios clubes de futebol. A disputa pelas transmissões evidencia uma visão de que os campeonatos transmitidos são uma mercadoria valorizada que pode se converter em crescimento de receita para esses possíveis proprietários. O desenvolvimento dessa concorrência também está relacionado a uma difusão das tecnologias e técnicas de transmissão dos eventos esportivos entre os meios tradicionais (televisão), e os novos meios (redes sociais e streaming).

A configuração desse cenário concorrencial inicialmente nos permitiria concluir que o torcedor ganharia com esse processo, pois segundo as leis do mercado, com a quebra do monopólio da Globo e o aumento da oferta de opções de produtos por vários canais e plataformas, o preço cairia. Essa concepção do monopólio da emissora como algo ruim ganhou força durante muito tempo e foi reforçada através do processo de demonização da Rede Globo, vista como a principal culpada pelos calendários, horários e regras do futebol brasileiro (SANTOS, 2013).

No entanto, a quebra do monopólio das transmissões, seja pela não renovação de contratos vencidos e/ou pelo aparecimento de novos meios de vinculação não cobertos pelos contratos, fez surgir um efeito perverso sobre o acesso ao televisionamento dos jogos em “televisão fechada”, a saber o fatiamento dos produtos com segmentação e sobreposição de propriedades sobre os campeonatos transmitidos. Essa situação pôde ser verificada, por exemplo, com a transmissão dos jogos da Libertadores da América e Sul-americana, que saíram do portfólio da Globo e, passaram a ser oferecidos somente pela Conmebol TV. A consequência imediata disso para o torcedor/telespectador se traduz num aumento do custo para acompanhar todas as competições do seu time ou a necessidade de escolha dos campeonatos que mais lhe agradam para serem pagos e consumidos.

Se na televisão fechada esse movimento de aumento dos custos para acompanhamento das partidas já avança a passos largos, na televisão aberta ele começa a se desenhar principalmente nos campeonatos estaduais, nos quais os contratos que estão vencendo não estão sendo renovados por discordância nos valores ofertados pela Globo e a expectativa dos clubes.

Livres no mercado para disponibilizarem a transmissão das partidas como bem entenderem, alguns clubes, como é o caso do Flamengo e do Athletico Paranaense, criaram recentemente serviços de streaming com pacotes pagos para a transmissão dos campeonatos estaduais em 2021. Consequentemente os jogos desses times pararam de ser transmitidos na televisão aberta nos estaduais e a possibilidade de assisti-los estava atrelada ao pagamento de um valor de 129,00 por todo o campeonato. O desdobramento disso foi a impossibilidade das camadas mais pobres de acompanharem esses jogos na televisão.

 Com a recente aprovação da lei do mandante (lei nº14.205/2021), que permite aos clubes de futebol o direito de negociação das transmissões e reproduções dos seus próprios jogos quando forem mandantes sem a necessidade de anuência do visitante, o movimento de avanço da oferta de serviços de pacotes de campeonatos pelos clubes sobre os seus próprios jogos deve ganhar fôlego. Diante disso, podemos nos deparar com uma realidade na qual os jogos migrariam da televisão aberta para esses serviços de streamings oferecidos pelos clubes.

 O desenvolvimento desse processo visa diretamente o interesse dos clubes em obter novas receitas através do oferecimento de um serviço que antes estava vedado a eles. Contudo, aprofunda o processo de elitização do futebol, pois cria um novo nível de exclusão dos torcedores/telespectadores no objetivo de acompanhar o seu time do coração. Se num primeiro momento o aumento do valor dos ingressos significou a elitização dos estádios e a exclusão dos mais pobres do acesso as partidas em loco, agora a fragmentação dos pacotes de transmissão de jogos e a diminuição da oferta de partidas na televisão aberta caminha para ser um segundo estágio desse processo.

Com a elitização do sofá de casa, o torcedor mais pobre ficará ainda mais distante do seu clube do coração e terá novamente que obter novos meios para alimentar a sua paixão diante de um esporte que se propõem cada dia mais comercial e menos passional.

Referências

ALVITO, M. A Rainha de Chuteiras: Um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro. Ed Apicuri, 2014.

BOLAÑO, C. Mercado Brasileiro de Televisão. Aracaju, Universidade Federal de Sergipe, PROEX/CECAC/ programa Editorial, 1988.

GAFFNEY, C. T.; Mascarenhas, G. O estádio de futebol como espaço disciplinar. In: Seminario Internacional Michel Foucault, 2004, Florianopolis. Seminario Internacional Michel Foucault – Perspectivas, 2004.

HOLZMEISTER, A. A nova economia do futebol: uma análise do processo de modernização de alguns estádios brasileiros / Antônio Holzmeister Oswaldo Cruz. – Rio de Janero: UFRJ/PPGAS, Museu Nacional, 2005.

MARCELLINO, N. C. Legados de megaeventos esportivos. Campinas: Papirus, 2013.

SANTOS, A. David G. dos. A consolidação de um monopólio de decisões: a Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. UNISINOS 2013.

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