Um golaço de Richarlyson ou um frangaço do futebol de homens

Na memória recente, o Flamengo de 2019, o Atlético MG de Hulk e o Palmeiras bicampeão da Libertadores podem aparecer como os grandes times dos últimos tempos no futebol brasileiro. Como clubista nada isento poderia citar o Grêmio de Marcelo Grohe, Arthur e Luan. Mas ao contrário do que pensam os jovens, o futebol já existia em anos anteriores. Na primeira década deste século, o São Paulo, campeão mundial em 2005 e tricampeão brasileiro em 2006, 07 e 08, parecia construir uma dinastia sem data para acabar. O time comandado por Paulo Autuori e, especialmente, por Muricy Ramalho teve grandes jogadores. Pessoalmente me encantava a dupla de volantes. Primeiro Josué e Mineiro. Depois, para grande surpresa mantendo a mesma qualidade, Hernanes e Richarlyson. Mais jovens, os dois últimos conseguiram tornar o meio campo ainda mais dinâmico. Richarlyson jogava e marcava com a mesma facilidade. Quando necessário, exagerava um pouco na virilidade e poderia ser excessivamente ríspido com seus adversários.

Apesar de ter sido protagonista em um meio campo campeão e de bom futebol, Richarlyson ficou marcado pela entrevista dada pelo ex-dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, que em 2007 insinuou que o jogador era homossexual. O jogador denunciou o dirigente por preconceito, mas teve seu caso arquivado. O juiz Manoel Maximiliano Junqueira Filho, à época, “sugeriu que se o jogador fosse homossexual, ‘melhor seria que abandonasse os gramados’”.

A própria torcida do São Paulo passou a tratar o talentoso e multicampeão jogador de forma discriminatória ao não citar seu nome quando “escalava” a equipe. Um integrante da torcida organizada Independente afirmava com orgulho. “Nós mandamos o Richarlyson embora”. Segundo o torcedor, “ele [Richarlyson] manchava a imagem da instituição”. Mesmo tendo defendido Richarlyson no processo, em 2007, “o presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo, Rinaldo Martorelli, também faz ressalvas. ‘Não aconselharia nenhum jogador a se assumir. É algo que traria muito desgaste à carreira’”.

Em 2012, o Palmeiras estudava a contratação do jogador. A torcida palmeirense protestou contra essa hipótese. Uma das faixas de protesto da torcida contra essa contratação dizia: “A homofobia veste verde”. Um integrante da Mancha Verde (principal torcida organizada do clube) negava o envolvimento da torcida na produção do material, ao mesmo tempo em que dizia que “não via nada de agressivo na faixa”.

Em 2017, Richarlyson foi contratado para jogar o Campeonato Brasileiro da série B pelo Guarani, de Campinas. Pouco antes de ser apresentado como jogador do clube, dois torcedores identificados com camisetas do clube “atiraram bombas em frente ao estádio Brinco de Ouro como forma de protesto pela contratação”. Na página oficial do Guarani no Facebook, apareceram diversas manifestações, algumas de apoio e outras com insultos. Esses insultos foram proferidos tanto por torcedores da equipe quanto por rivais. O vereador da cidade de Campinas, Jorge Schneider, torcedor do principal rival do Guarani, a Ponte Preta, ironizou: “A pessoa certa no lugar certo”.

Agora em junho de 2022 foi lançado o podcast do GE Nos armários dos vestiários, produzido pela Feel The Match apresentado por Joanna de Assis e William de Lucca. Em seu episódio de estreia, Richarlyson, hoje comentarista da Rede Globo, se sentiu à vontade para informar que já teve relacionamento sexual tanto com homens quanto com mulheres. No programa ele afirmou:

Com certeza minha carreira poderia ter sido muito melhor em termos midiáticos por aquilo que eu construí dentro do futebol se não tivesse essa pauta (sexualidade). Isso é visível, todo mundo sabe disso, mas chegou num ponto em que eu fiquei saturado mesmo. Chegou um ponto que alguém me pedia entrevista, e eu perguntava: “Vai falar sobre o quê?”. Mas questionamento de que poderia ser melhor? Sim, poderia.           

Foto extraída da página: Jornal de Brasília

A manifestação do ex-jogador foi muito bem recebida por militantes LGBTQIA+, especialmente aqueles vinculados aos esportes em geral e ao futebol em específico. Em um ambiente muito machista e cisheteronormativo, um jogador de grande qualidade e projeção “assumir” uma posição não-normativa além da direta ação afirmativa pode permitir que se tente, minimamente, implodir essa premissa esportiva masculina/machista e cisheteronormativa. Ao mesmo tempo em que a positividade da manifestação de Richarlyson se fez destacar e encheu de alegria meu coração de torcedor militante, não consegui abdicar do exercício intelectual de discutir nesse espaço do futebol de homens quais os comportamentos são definitivos para marcar um jogador e quais não são.

Meu amigo e idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, afirma que uma das grandes dificuldades de engajar jogadores negros para que eles realizem denúncias contra casos de racismo é que na maioria das vezes todos os seus atributos profissionais são colocados a margem e o atleta fica sempre identificado como aquele do episódio de racismo. Mesmo com todo seu esforço, Richarlyson acabou ocupando o lugar da masculinidade em suspeição mesmo sem disposição de fazer isso.

Diego Maradona sempre teve a brilhante trajetória esportiva e midiática marcada por problemas que incluíram sobrepeso e o abuso de drogas ilícitas. O não reconhecimento da paternidade de Diego Sinagra, entretanto, parece ter pesado pouco sobre sua construção biográfica. Mesmo com teste de DNA confirmando, o rei Pelé nunca reconheceu sua paternidade em relação a Sandra Regina Machado. Richarlyson foi excelente, mas não foi Pelé nem Maradona, mas não me parece que a diferença de tratamento dada as suspeitas sobre sua sexualidade e as confirmadas ausências paternas dos maiores jogadores de todos os tempos se baseie no que fizeram em campo. Me parece que nossa “cultura futebolística” se preocupa muito mais com homens que não performam a cisheteronormatividade do que homens que abandonam a prole.

Além dos títulos com o São Paulo, Richarlyson também ganhou a Libertadores com o Atlético MG treinado por Cuca. Então jogador do Grêmio, Cuca foi condenado por participação em estupro coletivo de uma menina de 13 anos em 1987 enquanto o clube realizava uma excursão na Suíça. Vejam, Cuca foi condenado a 15 meses de prisão por violência sexual contra pessoa vulnerável, não foi acusado, denunciado ou suspeito. Ainda assim, segue sua brilhante carreira de treinador sem dar muitas explicações sobre o ocorrido sendo fortemente considerado como possível treinador para a seleção brasileira após a Copa do Mundo de 2022.Condenado em primeira instância em 2017 por estupro coletivo realizado contra uma mulher albanesa na Itália em 2013, Robinho conseguiu atuar sem maiores dificuldades no futebol turco por dois anos e meio. O jogador condenado em última instância no início de 2022 teve problemas apenas em seu retorno ao Santos em outubro de 2020. Mais do que o protesto de torcedoras, o clube paulista desistiu de sua contratação após pressão de seus patrocinadores.

Parece um tanto fora de qualquer possibilidade imaginar que jogadores condenados ou acusados de violência sexual ou agressão contra mulheres resolvam assumir essas condutas, mas me chama atenção que temos muito mais facilidade em colocar essas condutas como do âmbito do privado enquanto uma forma de correr que possa colocar a masculinidade de um atleta em risco vire assunto de domínio público.

Sem dúvida, Richarlyson marcou um golaço, mas não deixa de ser mais um frangaço do futebol de homens que permite que exige/obriga que um jogador LGBTQIA+ se assuma ao mesmo tempo em que toleram jogadores ou ex-jogadores que são pais ausentes. Quantos jogadores ou ex-jogadores acusados ou condenados por violência doméstica ou sexual seguem suas trajetórias sem serem importunados?

Deixe uma resposta