Vitória do bom futebol ou da mítica garra charrúa?

Mês passado a seleção uruguaia sagrou-se campeã da Copa América pela  15o vez, reconquistando a hegemonia continental com uma equipe técnica, aguerrida e um excelente conjunto, que havia tido o melhor desempenho entre os classificados sul-americanos no Mundial de 2010 ao obter um honroso quarto lugar.

Após um início titubeante na primeira fase, a equipe “celeste” conseguiu derrotar a anfitriã Argentina, sua maior rival, nos pênaltis, mesmo tendo disputado grande parte da partida com um jogador a menos, em noite inspirada do arqueiro Muslera.

Duas grandes apresentações nas partidas contra Peru e Paraguai, respectivamente na semifinal e na decisão do torneio, levaram a equipe comandada pelo “Maestro” Oscar Tábarez merecidamente a um título que não conquistava desde 1995, com outra boa geração capitaneada pelo craque Enzo Francescoli.

Esta breve introdução pode parecer óbvia e tardia para todos àqueles que acompanharam a campanha uruguaia, mas a questão que desejo levantar neste post está além da conquista celeste e diz respeito à propagação midiática das representações coletivas sobre os supostos estilos de jogo nacionais.

Como estudioso do futebol uruguaio há alguns anos, na semana final da Copa América, estava participando do Congresso Nacional de História – ANPUH 2011, justamente para apresentar um trabalho sobre os “Primórdios do futebol uruguaio”, cujo resumo pode ser encontrado aqui.

Um dos pontos principais do artigo apresentado abordava justamente a criação na década de 1910 das míticas representações coletivas do manto “celeste” e da garra charrúa, cujo termo é uma alusão a tribos nômades guerreiras, que viviam no território onde hoje se encontra a República Oriental do Uruguai.

Uma relação do futebol com a sociedade uruguaia, que no início do século XX estava em pleno desenvolvimento urbano, político e econômico a ponto do país ser conhecido como a “Suiça da América” ou a “Atenas do Prata”, começa a se tornar simbolicamente mais forte a partir de 1910 com a identificação da camisa nacional e  com a famosa equipe de 1912, pois são momentos representativos para a mística do futebol uruguaio: os mitos do manto celeste e garra charrúa que acompanham as representações vencedoras sobre o futebol uruguaio  têm suas origens nestas datas.

A seleção vestiu pela primeira vez seu tradicional uniforme azul celestial em 15 de agosto de 1910, estreando com vitória por 3×1 sobre a rival Argentina em Montevidéu.  Após ter utilizado camisa azul com listra diagonal branca em 1903, camiseta branca um ano depois, vermelha e azul em 1906 e azul e branca com faixa vermelha, a “celeste” iniciava sua trajetória histórica.

No que concerne a seleção de 1912, suas quatro partidas contra a Argentina, sendo três vitórias e apenas um empate, simbolizam metaforicamente o início das façanhas futebolísticas atribuídas à suposta garra charrúa, fato que se repete nos relatos jornalísticos  nas vitórias uruguaias tanto em 1930, quanto em 1950 como pude observar em minha dissertação de mestrado.

A representação da garra charrúa transcende o âmbito esportivo, principalmente, nos momentos vitoriosos e qualifica o que seria, hipoteticamente, a essência de um povo lutador.

Diversas vitórias da seleção uruguaia de futebol ao longo da sua história foram atribuídas miticamente à garra charrúa e a camiseta “celeste” que simbolizam metaforicamente a força, coragem e raça do povo uruguaio. Os triunfos nos sul-americanos de 1916, 17, 20 e 23 reforçaram esta construção, consolidada definitivamente no imaginário coletivo com as vitórias olímpicas de 1924 e 1928 e a Copa de 1930.

Após essa breve contextualização histórica, o que me espanta é observar que diversos jornalistas quase cem anos depois ainda propagam os mesmos mitos para justificar uma legítima vitória uruguaia nos gramados, além de mencionarem o fantasma do “Maracanazo”.

Nas mesas-redondas televisivas pós vitória uruguaia, e em vários artigos e posts jornalísticos, pude observar a mitológica explicação da conquista uruguaia pela garra e a vontade dos jogadores. Apenas para exemplificar destacarei trechos de dois textos coletados em veículos da imprensa paulista. O colunista Benjamin Back no periódico esportivo “Lance” de 25 de julho de 2011 em crônica editorial intitulada “Poderemos ter outro Maracanazo …” afirma:

Pois é o futebol uruguaio renasceu em grande estilo, afinal, a sua seleção, com totais méritos, conquistou a Copa América jogando um futebol envolvente, solidário, com muita garra e principalmente ALMA. (grifo nosso)

Independentemente do jornalista ter destacado a qualidade dos principais jogadores celestes e a capa do jornal ter sido “O futebol venceu” o mais importante para a conquista uruguaia foi a espiritual alma uruguaia ?

Um exemplo ainda mais explícito deste discurso teleológico está no texto do “Boleiro” Luiz Zanin do jornal “O Estado de São Paulo” no dia 26/07/11. Alguns trechos da crônica “O ‘algo mais’ da seleção uruguaia” que também aciona a memória de 50 são emblemáticos:

A vitória do Uruguai na Copa América trouxe de volta à memória fatos reprimidos no inconsciente futebolístico brasileiro em 1950, o chamado Maracanazo. […]

A ponte entre os dois tempos é a tal da “raça”, o espírito uruguaio, que, de tão forte e consistente, seria capaz de definir jogos e inclinar o resultado em favor da Celeste Olímpica. Essa mesma determinação que os uruguaios teriam de sobra e a nós faltaria.   […]

A chamada “raça” é apenas aquele algo mais que pode fazer a diferença quando você tem os outros ingredientes disponíveis, a técnica, a tática, a inteligência do jogo, etc. É um plus, nunca um fator determinante em si. Mas esse fator extra, que isolado, pouco quer dizer, pode significar apenas a diferença entre perder e ganhar  uma partida decisiva. Por isto, sinto dizer aos comentaristas mais “técnicos”, quem o ignora, corre o risco de não entender nada da ESSÊNCIA do futebol.  […]

Não entende sequer o que acontece dentro de campo, em especial, o que se passa fora, aquilo que extrapola as quatro linhas e ressoa na PSICOLOGIA DE UM POVO. Essa firme dignidade, expressa em campo, parece representar muito bem o povo uruguaio, país pequeno, apenas 3 milhões de pessoas espremido entre dois gigantes sul-americanos e mantendo suas características próprias com serenidade. […]

Em 1950, esse traço do CARÁTER foi simbolizado por Obdúlio Varela. O comandante da vitória sobre o Brasil. Quem quiser saber dele, leia o FUNDAMENTAL “Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano. São páginas de antologia.”(grifos nossos)

Sobre a lúdica obra do historiador Eduardo Galeano sobre o futebol é fundamental observar a crítica de Hugo Lovisolo disponível em nosso blog.

Enfim, a mera reprodução desta representação do futebol uruguaio praticamente como uma coragem “divina e celestial” na minha visão minimiza o valor da vitória “celeste” e é extremamente “psico-mitológica”.

Forlán e Suarez são grandes jogadores extremamente técnicos, a equipe tinha o melhor treinador da competição, um bom goleiro e uma defesa sólida. Vontade, raça e desejo de ganhar o Paraguai, o Peru, a Argentina também mostraram  nas partidas em que foram derrotados pelo campeão.

 Acreditar na suposta definição pelo esotérico “algo a mais” da raça charrúa, ainda propagados por jornalistas quase um século após a epopéia da  míticaequipe de 1912 é como acreditar no Renascimento dos Smurfs. Haja poção mágica para os jornalistas Gargaméis.

2 thoughts on “Vitória do bom futebol ou da mítica garra charrúa?

  1. Caro Álvaro:

    Como já discutimos lá em São Paulo, concordo com o que você escreveu. Como historiadores, devemos tentar contestar ou criticar estes mitos construídos sobretudo pela imprensa. Mas, por outro lado, estas questões são interessantes e falam algo sobre as representações sociais de um povo, ou de como este povo é visto.

    Parabéns pelo post e um grande abraço,

    André Alexandre

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