O tempo parece parar. Os milésimos viram horas, os segundos uma eternidade. Todos ao redor olham para cima. A bola flutua no ar, rodopia, quase em uma cerimônia. Seu algoz, sob o chão, prepara a arapuca para recepcioná-la em queda. O salto. O impulso. O giro no ar. O pé encontra a bola. Dentro da grande área, nasce um dos movimentos mais memoráveis da história do futebol: a bicicleta.
Há quem diga que uma bicicleta só é perfeita se resulta em gol. Em contrapartida, há quem prefira definir pela execução do movimento – que se for meio de lado, não é um movimento completo; seria, portanto, um voleio ou uma puxeta.
A imagem abaixo foi considerada pela imprensa da época como a bicicleta perfeita. Ela foi feita pelo fotógrafo Alberto Ferreira, em 1965, durante uma partida entre Brasil e Bélgica. A matéria do jornal A Gazeta Esportiva é posterior, de 1984, e a utiliza para representar visualmente uma reportagem especial, em celebração ao aniversário do jornal. Pelé é escolhido para ilustrar a data e é descrito na matéria como “a versão humana da arte e da magia e se jogar futebol”.
O movimento é perfeito, com uma execução impecável, todos os movimentos coordenados segundo a melhor aplicação das leis da física. O registro fotográfico também, não à toa foi muito premiado. Mas algo intriga na continuidade da jogada, naquilo que a fotografia não consegue capturar e que pode, eventualmente, alterar toda a tonalidade do objeto: Pelé errou o chute.
‘Diamante Negro’, o invetor da bicleta
A reflexão que podemos fazer de primeira é a de que, em relação à dúvida levantada aqui, a imprensa escolheu o que define a bicicleta perfeita: a execução, e não a conclusão do objetivo final – o gol. Mas como tudo tem um contexto, há uma explicação para isso.
A imagem abaixo é de uma bicicleta registrada em 1948 e executada por Leônidas da Silva – ou Diamante Negro. Ídolo brasileiro é considerado o “inventor” da bicicleta. Leônidas já era conhecido por executar a jogada desde anos antes do registro acima, o que significa que já havia a expectativa de um registro fotográfico do astro em meio à ação tão repercutida. O lance aconteceu na partida entre São Paulo e Juventus, vencida pelo tricolor paulista por 8 a 0. Diferente de Pelé, o craque fez o gol no lance.
Fonte: Lendas do Futebol. Disponível em: https://lendasdofutebol.com/jogador/leonidas-da-silva/
O próprio jogador tem consciência de que não inventou o movimento, mas ajudou a difundir. Por sua notoriedade e destaque ao final da década, acabou sendo conhecido como o criador do movimento. Mas por que, então, não é a imagem de Leônidas, o percursor do movimento, que foi registrado executando com maestria a finalização, que de fato teve efeito em sua jogada, conhecida como a representação da bicicleta perfeita?
As narrativas que compõem a imagem
Há diferenças claras e marcantes para responder essa pergunta. A foto do Pelé é simplesmente mais bonita, um registro fotográfico melhor. Pelé é um jogador mais relevante, mais conhecido, com feitos mais marcantes. Mas, no fim, todas as justificativas e comparações se limitam à narrativas, afinal, só um dos dois concluiu o objetivo máximo da jogada com êxito.
A televisão só chegaria ao Brasil em meados da década de 1950. Antes, apenas o rádio transmitia as partidas ao vivo, e os jornais físicos resumiam os acontecimentos importantes da partida. Por isso, antes das imagens simultâneas, as fotos dos jogos utilizadas nos periódicos brasileiros tinham uma função muito mais ampla.
Sem as imagens em tempo real, a fotografia assume um papel sensível: tal qual a rádio e os textos dos jornais, ela tenta transmitir a emoção de um lance do jogo, amarrando suas intenções estilísticas e estéticas ao tom da matéria, da crítica e das narrativas sobre o jogo. Ao menos até a década de 1960, a maior parte dessa recuperação era feita com conjuntos de imagens sequenciais, com a intenção de mostrar o desenlace do lance até a sua conclusão.
Ou seja, os fotógrafos tentavam transportar visualmente elementos que demonstrassem as emoções e anseios que o veículo jornalístico desejava mostrar, e a narrativa visual era costurada por críticas, relatos orais, narração do rádio, temperatura da torcida e muitos outros aspectos influentes da opinião pública.
O momento histórico é conveniente. Essas narrativas tinham a intenção de romantizar o jogo. Segundo Nelson Rodrigues, elas eram mais fidedignas ao jogo do que as próprias imagens da transmissão simultânea:
“E o patético é que, quinta-feira, o videoteipe de Brasil x Inglaterra nos dera uma versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: – o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: – a imaginação está sempre mais próxima das essências. Ao passo que o videoteipe é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético. Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglaterra, uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo, altamente veraz. O videoteipe demonstrou o contrário. Azar da imagem (1993, p.90 citado por Melo, 2009).
A construção da imagem de Pelé é diretamente influenciada pelas narrativas do rádio e dos periódicos da época, assim como a de Leônidas (algumas décadas antes). As fotografias são narrativas visuais e possuem, portanto, significado. É a diferença dessas narrativas que explica porque as imagens têm pesos diferentes.
Os relatos orais da época eram determinantes para a disseminação da ideia de Leônidas como o representante máximo da bicicleta, por exemplo. O estádio Pacaembu, recém-inaugurado em 1942, ano em que o jogador se transferiu para o São Paulo, teve aumento de vendas em bilheteria com a divulgação da presença do astro. Fotógrafos esportivos tentavam capturar o momento pelo qual o jogador era conhecido nos jornais e no rádio: a execução da bicicleta.
A partir da importância do jogador na difusão do movimento e pela popularidade da bicicleta nas narrações radiofônicas da época, cresce o interesse e a possibilidade de outros jogadores também serem registrados durante a execução de uma bicicleta.
Leônidas foi fotografado fazendo o movimento pouquíssimas vezes. Quando atuava no São Paulo, por exemplo, o jogador só teria executado cinco vezes, e há apenas duas ou três fotografias do jogador executando o movimento. Sua associação com a bicicleta consistiu em menor escala pelas imagens e com mais força pelos relatos orais, narrativas dos periódicos e do rádio.
O Diamante Negro construiu um apelo ao ato performático que, ao passar dos anos, era interessante para ilustração do “craque”. A fotografia de Pelé, 17 anos depois, é uma consequência direta de uma evolução da fotografia esportiva, que une diversos elementos para além do campo, mas não apenas isso. Pelé é o protagonista de um projeto de nação que seria idealizado na década de 1950, e as narrativas se voltariam a este objetivo.
A construção da imagem de Pelé
Os dois jogadores foram craques geracionais em épocas diferentes, mas na imagem de Pelé há uma construção que vai além. O ídolo santista era endeusado, glorificado e imortalizado pelas narrativas do rádio, da imprensa e, mais tardar, até das imagens. O futebol, pós década de 50, se torna um elemento cultural central para a construção da identidade nacional brasileira ideal.
O sucesso no futebol, o apelo popular e a figura dos craques seriam recursos utilizados como uma tentativa política de associação identitária da nação com o jogo. Por isso, os discursos predominantes no período atribuíam ao futebol um papel de fortalecimento da ideia de nação. O então camisa 10 da seleção brasileira era o craque símbolo dessa identidade.
A imagem de Pelé durante uma bicicleta, portanto, seria uma ilustração perfeita para esse anseio. Ela também reforça os possíveis efeitos da fotografia esportiva – e de sua evolução ao longo dos anos antes da TV – na condução do otimismo brasileiro em relação ao contexto social do período. Não importa se o tiro atingiu a meta, o mais relevante era a utilização de recursos que denotassem a superioridade nacional brasileira pelo talento de Pelé.
O futebol e a construção da identidade nacional brasileira, em consonância, sintetizam o que os brasileiros gostariam de ser e, o futebol, como símbolo representante da cultura nacional, era o catalisador necessário. Essa idealização se expande também aos ídolos; narrativas mitológicas são construídas em torno da imagem de Pelé, que é imortalizado pelo olhar de quem o observa e quem conta sua história. As narrativas, permeadas de sentimento nacionalista, servem como fio condutor da sua representação na imprensa.
Neste caso em específico, há toda uma expectativa de grandeza em torno da imagem de Pelé na matéria, gerada tanto pelos discursos construídos nas narrações do rádio quanto pelos jornais, reproduzindo a imagem que Pelé possuía nos discursos midiáticos através da fotografia.
Podemos concluir que Leônidas trilhou o caminho para que, no futuro, Pelé brilhasse. A posição do fotógrafo no momento da captura do chute, a suspensão no ar de Pelé formando um arco com seu corpo, sua altura em relação ao gramado; detalhes técnicos que fazem com que a fotografia de Pelé seja eleita e descrita como representante da “bicicleta perfeita”.
INTERTÍTULO
Fonte: ge – globo. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/2013/09/emocionada-viuva-de-leonidas-recebe-homenagem-do-sao-paulo.html
A escolha da foto de Pelé como representante da bicicleta perfeita em detrimento da imagem de Leônidas é sintomática, consequência natural de uma evolução narrativa cujo fio condutor é, também, a evolução dos jornais, revistas, rádios e da fotografia esportiva. A malemolência, o futebol arte, a irreverência, o drible e a plasticidade eram recursos que, se recuperados visualmente, poderiam alimentar as narrativas românticas sobre a identidade nacional. A reflexão que fica é a de que todas as convicções, o imaginário lúdico e as nossas opiniões são, diretamente ou indiretamente, afetados por como contamos ou ouvimos uma história.
Referência
MELO, Victor Andrade.ESPORTE E CINEMA: RELAÇÕES E POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS. Rio de Janeiro: Cadernos de Formação RBCE, p. 111-126, 2009.