A série “Porta 7” quis ficcionar um mundo e ficou na metade do caminho. Alguns de seus personagens não parecem barras: usam tacos de hóquei e não entram em “paravalanchas”. Tampouco convence o abecedário sem “eses“. Mas, ainda assim, sem “reflexão”, chega-se ao estereótipo.
Aí está o coração deste artigo. Não em criticar o conteúdo do último produto argentino para exportação, mas sim em reconstruir suas condições de previsibilidade. Importa o processo, não o produto. Proponho um percurso histórico sobre como as barras tem sido descritas, e, portanto, prescritas, pelos discursos de poder. Quando digo poder aponto para os meios de comunicação, as ficções artísticas ou literárias e para o Estado e suas leis. Porque as “barras bravas” são uma invenção nascida de um pânico moral tão antigo quanto a bola de couro.

No dia 21 de outubro de 1922, aconteceu o primeiro homicídio em um estádio argentino. No campo de Tiro Federal, Rosario, Francisco Campá, dirigente do Newell’s Old Boys, e Enrique Battcock, trabalhador e ex-jogador do Tiro Federal, brigaram no intervalo. Minutos depois o primeiro dispara uma bala letal sobre o segundo. A violência convertida em morte, no futebol argentino masculino, está em sua própria origem.
A crescente violência da década de vinte leva que grande parte da imprensa comece a chamar os “torcedores fanáticos”, que protagonizavam tumultos ou episódios “antidesportivos”, de “barras” ou “muchachada”. O historiador Julio Frydenberg assinala que, a partir de 1920, o jornal Última Hora começa a utilizar o termo “barra”. Em fevereiro de 1925, o jornal Crítica publica uma nota intitulada “Barras Bravas” definindo esse grupo de torcedores como “energúmenos que só vão aos campos com o objetivo de manifestar seus instintos primitivos”. De sua parte, o jornal La Cancha, em novembro de 1928, propõe a expulsão dos sócios identificados como “torcedores selvagens, os barras mais agressivos, brutais, fanáticos e antidesportivos”.
A mesma cobertura midiática acontece com o segundo homicídio vinculado ao futebol argentino. Em 1924, depois de um Argentina x Uruguai, pela Copa América, que terminou 0 a 0, na Cidade Velha de Montevideo, houve uma briga entre as torcidas de cada país. A confusão se torna tragédia quando o uruguaio de 22 anos, Pedro Demby, sangra até a morte com o cheiro de pólvora. A imprensa aponta como responsável um tal de “Petiso”, líder de “uma barra argentina” residente em La Boca.
É entre os anos vinte e trinta do século XX, então, quando a imprensa constrói a noção de “barras”. Isso é feito em meio a um pânico moral pela crescente violência. Nessa conjuntura nasce uma associação que existe até hoje: os “barras” são os criadores de todos os males que afligem o futebol argentino. Aquele pânico moral começa a se expandir como uma mancha de tinta por todo tecido social, tanto que Roberto Arlt, o “literário do submundo”, nas suas “aguasfuertes porteñas” de 1931, escreveu “são como esquadrões rufiões, brigadas de bandidos, quintos de canalhas, barras que como expedições punitivas semeiam o terror nos estádios… esses barras são os que em alguns bairros chegaram a constituir uma máfia, algo assim como uma “camorra”, com suas instituições, suas lutas armadas”.
A origem do pânico moral que associa “violência”, “máfia” e “barras” deve ser entendida como uma reação das classes dominantes diante da iminente popularização do futebol masculino. Não é por acaso que se inicia na década de vinte, quando as classes populares – em sua maioria homens – se juntam em massa nos estádios; e que se expande definitivamente nos anos trinta, momento em que a apropriação “desde baixo” é concluída, como disse o sociólogo Pablo Alabarces. Se por um lado as elites se resguardam em cargos de dirigentes, associações ou imprensa desportiva; as classes populares se incorporam ao futebol como jogadores ou torcedores. Há condições materiais que possibilitam esse fato. Primeiro, a profissionalização do futebol masculino em 1931, que permite que jogadores, de origem pobre, façam daquele esporte um trabalho. Posteriormente, a institucionalização do “sábado inglês” em 1932 possibilita que o tempo livre do trabalhador seja tingido com as cores de algum clube.
O pânico moral que origina a invenção das barras não é outra coisa senão um espanto de classe. O pavor das elites diante de uma invasão “bárbara”. Os barras serão, desde há um século até hj, os “selvagens inadaptados de sempre”, não só pelo seu comportamento, mas também por estarem onde não pertencem.

Outro momento crucial em torno das narrativas sobre as barras se dá entre a década de cinquenta e sessenta do século passado. Nesses anos emergem os primeiros grupos de torcidas organizadas que se autoidentificam como barras de alguma equipe: Boca, Racing, San Lorenzo, Huracán, Rosario Central e Belgrano de Córdoba são alguns exemplos. Quem lê esse artigo já notará uma obviedade histórica nem sempre dita: as mortes violentas no futebol se contam desde a década de vinte e os grupos que se autorreconhecem barras aparecem nos anos cinquenta e sessenta. Em outras palavras: a “violência no futebol” não nasce com as “barras bravas”.
São por esses mesmos anos que a indústria cinematográfica nacional estreia vários filmes centrados na “torcida” de futebol: El hincha (1951); Somos los mejores (1968); Pasión dominguera (1969); Vamos a soñar con el amor (1971) y Tango desde el tablón (1971). Essas produções vão moldando um “verdadeiro torcedor” associado à fidelidade incondicional, o amor desinteressado, o sacrifício, o trabalho honrado, o clube como herança familiar e um comportamento tão passional quanto pacífico. Forja-se um protótipo ideal de torcedor – onde as mulheres não têm lugar – que tem como antagonismo moral “as barras”, e a imprensa ecoa tal divisão. O jornal Crítica, em 1959, ao mesmo tempo que define o “torcedor” como aquele “que vai com o simples e puro propósito de passar uma tarde sã de emoção, realizando por ele mil sacrifícios”; também diz que nos estádios estão aqueles que “se dizem torcedores, mas na realidade são fanáticos perigosos que amalgamam essa condição com a de delinquentes e se mostram perversos quando vão ao jogo”. O “são” e “puro” nos torcedores, o “perigo” e a “delinquência” nas barras. Diferenças que se tornam desigualdades alimentando um perdurável pânico moral.
Amílcar Romero, precursor nas investigações sobre a “violência do futebol” e as “barras”, diz que, na década de sessenta, nasce o “Futebol Espetáculo”. É o começo da “violência institucional”, ou seja, de formas autoritárias que encontram em matar ou morrer um desenlace possível. Romero destaca a morte de Alberto Linker, em 19 de outubro de 1958, em um “Vélez x River”, como sintoma de uma época. Por um lado, o caso expõe a impunidade de uma repressão policial que se torna moeda corrente nos estádios argentinos, porque Linker morre por bombas de gás lançadas pela guarda de infantaria. Por outro lado, o caso resulta em um editorial do jornal La Razón no qual se denuncia a existência de “barras fortes” vinculadas com dirigentes de clubes e políticos influentes.
No entanto, sem dúvida, o caso mais emblemático desta era é o do torcedor do Racing de Avellaneda, Héctor Souto, assassinado por barras do Huracán, em 1967. Para começar, a morte de Souto é resultado de uma emboscada da barra do Huracán a torcedores do Racing como consequência do roubo de um guarda-chuva por parte dos segundos aos primeiros. Naquela “armadilha”, Souto é atacado por uma dezena de barras do Huracán. A investigação judicial descobre que os responsáveis pelo homicídio haviam entrando no jogo sem ingressos, com cartões de jogadores da Associação de Futebol Argentino (AFA). Romero também conta, analisando o caso, que a certidão de óbito de Souto expedida por um médico de Huracán e a perícia forense não registram nenhuma marca de golpe no cadáver. Além disso, os barras envolvidos contaram com um staff de advogados importantes. As condenações foram mínimas: o autor principal recebeu seis anos e os instigadores, dois.
Amílcar Romero traça uma linha interpretativa de enorme impacto nas narrativas futuras: há um tom de denúncia em relação às “barras bravas”, que já não atuam sozinhas ou isoladas, mas sim dentro de uma complexa trama de favores e atores que pactuam para garantir a impunidade e extrair recursos econômicos dentro de um futebol cada vez mais mercantilizado e violento. Assim, em um de seus últimos trabalhos, Romero afirmava que “um barra brava por excelência vive disso. Vive dos bilhetes, dos ganhos ou lucros que tiram dos bilhetes, a segunda fonte de ingressos, embora punhais sejam esfaqueados, é a porcentagem que os jogadores e diretores técnicos lhes passam, além disso são um fator de decisão política, decidem até turnês de jogos.. decidem até a compra de jogadores… decidem a vida e a morte de diretores técnicos. Tem um poder efetivo real”.

O retorno à democracia e a década de noventa são outras variáveis no que diz respeito às representações sobre as barras. O pânico moral contra “as máfias do futebol” chega ao seu ápice. Em parte, porque o registro de mortes dispara rapidamente. Entre a segunda metade dos anos oitenta e durante todo os anos noventa, se concentram mais da metade do total de vítimas fatais vinculadas ao futebol até aquele período. Em outras palavras, nos 17 anos que vão desde 1983 até 2000, se mata e se morre mais do que em todo o período que vai desde o primeiro assassinato em 1922 até o retorno da democracia.
Nessa época também há uma reação contra as barras porque percebe-se os restos de um autoritarismo em revisão diante da nova “primavera democrática” alfonsinista. Dois exemplos. O primeiro é a estreia do filme Las Barras Bravas dirigido por Enrique Carreras e lançado em 1985. O filme condensa todos os prejuízos e estereótipos sedimentados contra esses grupos. A primeira cena mostra recortes de jornais que retratam as diferentes barras sob os títulos “terror e sangue”, “o retorno da violência” ou “incêndio, roubos e caos”. Na cena seguinte, uma barra de uma equipe qualquer é filmada indo a uma partida em um vagão, cantando “Evita, el bombo, el tren es un quilombo” e “los vamos a reventar, los vamos a reventa”. Esse mesmo grupo, minutos depois, irá atacar homens, estuprar mulheres, amassar carros, romper alambrados, vender drogas, portar armas e roubar idosas. Os barras dos anos oitenta são retratados como estupradores, violentos, traficantes, ladrões, assassinos, saqueadores e… peronistas.
O outro exemplo vem do Estado, são as primeiras leis destinadas a intervir no “flagelo da violência do futebol”. Em 21 de junho de 1985, é aprovada a normativa 23.184 intitulada “Regime penal e contravencional para a violência em espetáculos esportivos, conhecida como ‘Lei da Rua’”. O regulamento inaugura marcadas continuidades que perdura até hoje. A “violência no futebol” passa a ser vista menos como um fenômeno a ser regulado e mais como um problema a ser erradicado, e para isso o que se deve fazer é extinguir os “grupos” responsáveis. O diagnóstico é centrado na rivalidade entre torcidas de diferentes equipes sem mencionar, por exemplo, a repressão policial que havia sido uma das principais causas de morte na época. Com as primeiras intervenções pontuais do Estado na questão, se instaura um modelo de segurança repressivo e focado de vez em quando na prevenção.
A norma 23.184 não apenas não surte nenhum efeito nos índices de violência, como também durante toda a década de noventa os números atingem níveis inéditos. A resposta estatal é insistir, com mais tolamente que diagnosticamente, pelo mesmo caminho. Em março de 1993, é sancionada a lei 24192 que modifica parcialmente o regulamento anterior. A culpa das barras é acentuada, definindo-as como um tipo social que “atenta contra a harmonia e a paz nos estádios de futebol”. Ao mesmo tempo, avança-se na criação de um Registro Nacional de Infratores à Lei do Esporte. Busca-se proibir o ingresso dos jogos aos torcedores com antecedentes penais. Enfatiza-se a associação entre violência no futebol e delinquência social.
Na virada do século as barras são o que sempre foram: as principais culpadas de uma “violência no futebol” crescente e letal. A novidade está no fato de que, desde o retorno à democracia, elas se tornaram objeto de legislação, e sempre sob o selo de um punitivismo tão declarado na retórica como inviável na prática, pois, apesar das proibições, detenções, julgamentos, adjetivações midiáticas, as barras continuam povoando os campos argentinos.

Nos primeiros anos do novo século, aparecem alguns casos de fortes enfrentamentos entre “facções” internas de barras do mesmo time. Algumas brigas são dentro dos estádios e outras fora. A violência anterior não desaparece. As mortes entre torcedores de equipes diferentes e a repressão policial continuam, ainda que se veja uma diminuição em seu peso relativo em relação às mortes intra-barras.
Entre 2007 e 2013, com os vai-e-vem típicos de uma agenda de Estado espasmódica e improvisada, chega-se à proibição da torcida visitante. Como vários trabalhos acadêmicos têm demonstrado, nos últimos anos os cenários dos enfrentamos e seus protagonistas mudaram. Observa-se uma relação inversamente proporcional entre as brigas de barras de times diferentes e as brigas de barras de um mesmo clube. Se os enfrentamentos entre torcedores – não só barras – com camisas diferentes foi a principal causa de morte desde o retorno da democracia até o princípio do século XXI, as brigas entre barras do mesmo clube representam 56% do total de mortes vinculadas ao futebol entre 2006 e 2017, como demonstraram Diego Murzi e Ramiro Segura. E essas brigas se desenvolvem principalmente em espaços e tempos alheios ao cenário do futebol público por excelência: os estádios durante os dias de jogo. A violência é “privatizada”: acontece em bares, praças, esquinas, boliches, recitais, atos políticos e em dias sem partidas de futebol. Ao desenvolverem-se longe das operações de segurança, aumentam as possibilidades de arma de fogo. Resultado: maior letalidade.
Esse último cenário, marcado por uma sensação de onipresença e imprevisibilidade da violência, e, portanto, das barras, leva o pânico moral a níveis estratosféricos. Um contexto propício para a expansão sem limites da “Grabiologia”, uma fobia travestida de análise que caminha sobre dois pés: por um lado, todas as barras e os barras são reduzidos a um mesmo modelo, o de mafiosos, milionários e violentos. A figura de Di Zeo o Bebote é universalizada. Por outro lado, essa mesma fobia leva a encontrar esse modelo de barras em qualquer grupo organizado dos setores populares – sindicatos, movimentos sociais, “piqueteros”, economias populares -. É daí que surge a expressão “uma sociedade barra brava”. E então voltamos, mais uma vez, à origem: um pânico moral que nunca deixou de ser um espanto de classe.
Este olhar tornou-se comum. Predomina na imprensa desportiva com as colunas cotidianas do jornalista de mesmo nome; as editorias mais famosas publicam ficções como “El Barra Brava” de Fernando Gonzales, no qual todas as ações desses grupos se reduzem ao código penal; os deputados e senadores propõem como única política pública integral para enfrentar o complexo fenômeno da “violência no futebol” uma monstruosidade legal chamada… “lei anti-barra”. A Netflix simplesmente se juntou a um trem em marcha e encontrou um pacote de exportação perfeito.

Ninguém nega que algumas “barras bravas” argentinas encontram na violência uma experiência tão agradável quanto útil; nem que façam de certos mercados ilegais uma caixa de poupança. O problema é o recorte e suas consequências. Primeiro, porque ao sobredimensionar sua responsabilidade, outros atores são eximidos de culpa. Segundo, porque em toda descrição sempre há uma prescrição. Como dizia Norbert Elias, “dê a um grupo um nome ruim, e viverá segundo ele”. Terceiro porque este olhar julga mais do que compreende. Definir as barras pela violência é confundir a parte com o todo, em qualquer desses grupos há muito mais que ataques, tiros ou pontapés. Caracterizá-las como “máfias” é forçar um círculo dentro de um quadrado. Bebote não é Vitor Corleone. E reduzir uma filiação à busca de dinheiro é mais uma confissão projetada do que uma escolhe alheira. Assim, chega-se a uma noção de “barra” mais acusatória do que explicativa. O resto é previsível, porque até os algoritmos têm uma história.
Texto originalmente publicado no site Panamá.
Tradução: Leticia Quadros.
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