A OIT e o trabalho decente no esporte: construindo um marco normativo para os profissionais do século XXI

Introdução

O panorama esportivo contemporâneo revela uma dinâmica econômica complexa, que desafia as categorias tradicionais da história do trabalho. Com um mercado global avaliado em bilhões de dólares e uma audiência que ultrapassa bilhões de espectadores, o setor esportivo consolidou-se como uma indústria relevante no século XXI (OIT, 2019, p. 1). Recentemente, foi publicada uma análise no Blog do LEME sobre as contradições entre retórica meritocrática e práticas exploratórias no esporte, destacando documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Neste texto, trato dos documentos da OIT como uma inflexão histórica na abordagem institucional das relações laborais esportivas e as agendas advindas desse avanço.

Desde sua fundação em 1919, a OIT concentrou esforços na normatização do trabalho industrial e de serviços, sendo resultado de processos organizativos prévios que envolveram trabalhadores, empregadores e o Estado (FERRERAS, 2019, p. 3). Sua criação reflete uma resposta integrada a questões humanitárias, políticas e econômicas, situadas num período de intensa industrialização, conflitos bélicos e transformações sociais profundas. Ao longo do século XX, a organização debateu e enfrentou temas centrais das relações de trabalho, embora a ratificação de suas recomendações pelos países-membros tenha sido marcada por desafios e constantes rearranjos estruturais, manifestando as tensões características da relação entre Capital e o mundo dos trabalhadores (FERRERAS, 2019).

 

OIT, esportes e lazer: perspectivas históricas e sociais

De acordo com o documento temático para o debate do Foro de diálogo mundial sobre o trabalho decente no mundo do esporte, a relação entre a OIT e o mundo dos esportes e do lazer possui raízes históricas profundas, que constam do início do século XX. Em 1921, Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos modernos, reuniu-se com Albert Thomas, primeiro diretor-geral da OIT, reconhecendo o valor do esporte na promoção do bem-estar dos trabalhadores (OIT, 2019, p. 27).

 No ano de 1924, surge a recomendação n° 21, que reconheceu o tempo livre como direito fundamental do trabalhador, surgindo em meio a intensas lutas sindicais do pós-Primeira Guerra Mundial. Esse avanço contribuiu para a legitimação do direito ao descanso e ao lazer. Posteriormente, a recomendação n° 48, de 1936, trouxe à tona as condições de estadia dos trabalhadores marítimos em grandes portos. Na diretriz IV, aborda-se a criação de casas de acolhimento, espaços de sociabilidade, incentivo à organização de sociedades esportivas e estimulando medidas voltadas ao apoio familiar. Tais questões evidenciam a ampliação do conceito de dignidade no trabalho, para além da dimensão salarial, integrando aspectos vinculados à qualidade de vida, saúde e integração social do trabalhador (OIT, 1936).

Ao longo das décadas, a OIT continuou esse processo de ampliação normativa, como demonstram as recomendações n° 138, de 1970, e n° 173, de 1987, bem como as voltadas ao setor da pesca, n° 196, de 2005, e n° 199, de 2007. Tal evolução revela um esforço de articulação entre diferentes setores para organizar serviços, espaços e ampliar a oferta de práticas esportivas e recreativas para distintos grupos laborais, reconhecendo o papel estratégico do lazer na promoção do desenvolvimento das relações humanas (OIT, 1970; OIT, 1987; OIT, 2005; OIT, 2007).

Além do incentivo ao lazer, tornou-se central na agenda da organização o enfrentamento ao trabalho infantil. Em 1965, conforme consta na Recomendação n° 125,  a organização define parâmetros para proteção de menores em cadeias produtivas ligadas ao esporte, mais especificamente às indústrias de roupas e equipamentos esportivos (OIT, 1965). Essa atuação está em consonância com outras ações focadas em políticas públicas internacionais que atuam no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Mais recentemente, a OIT assumiu protagonismo ao firmar parcerias estratégicas com megaeventos esportivos, como o acordo celebrado em 2018 com o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio (TOKYO 2020). O objetivo central dessas ações é a promoção do trabalho decente em todas as fases de futuros eventos, estabelecendo parâmetros que garantam condições laborais dignas em toda a cadeia (OIT, 2019).

Assim, constata-se que a trajetória da OIT e a sua relação com o mundo das práticas esportivas reflete a ampliação do escopo da proteção social, historicamente ancorada no reconhecimento do esporte e do lazer como instrumentos de inclusão social, combate à discriminação e promoção da igualdade de oportunidades. Demandas inspiradas nessas diretrizes têm buscado potencializar o tempo livre e o bem-estar dos trabalhadores, sobretudo em contextos marcados por desigualdades profundas, reafirmando a centralidade dessas agendas para o século XXI.

Neste contexto, a evolução da agenda da OIT apresentada neste texto representa um movimento das práticas corporais como direito social fundamental e o reconhecimento contemporâneo de sua importância para o mundo dos trabalhadores. Se, por um lado, as diretrizes tradicionais da organização enfatizaram consistentemente o potencial transformador do esporte e do lazer para a inclusão social e o combate às desigualdades, por outro, as evidências emergentes revelam a necessidade de enfrentar sistematicamente as dimensões mais problemáticas do mundo esportivo, onde direitos fundamentais são frequentemente violados e onde persistem discriminações e explorações diversas.

 

No trabalho esportivo e para além dele: violência de gênero, racismo e todas as outras formas de discriminação no mundo esportivo

O universo esportivo contemporâneo permanece marcado por persistentes desigualdades e múltiplas formas de discriminação, que desafiam os princípios de respeito, diversidade e equidade promovidos internacionalmente pela OIT. A violência de gênero revela-se como fenômeno que se manifesta tanto na restrição de acesso de mulheres ao esporte quanto pela precariedade das condições em que muitas atletas atuam. Apesar do progressivo aumento da participação feminina em competições olímpicas e profissionais, subsistem disparidades salariais, menor acesso a patrocínios e cargos de liderança, além de práticas discriminatórias como a desigualdade no uso de instalações, premiações e cobertura midiática (OIT, 2019). Ademais, as atletas enfrentam obstáculos específicos ligados à saúde sexual e reprodutiva, tal como ausência de políticas adequadas de licença maternidade e exposição recorrente a situações de assédio, abuso e violência de gênero, seja por parte de treinadores, dirigentes ou membros da comunidade esportiva (OIT, 2019). Estudos recentes estimam que entre 2 e 8% dos jovens atletas já sofreram abusos sexuais (OIT, 2019, p.11).

O racismo constitui, por sua vez, um dos desafios mais visíveis e recorrentes nas principais modalidades esportivas, especialmente nos esportes coletivos. Jogadores racializados são frequentemente alvos de insultos por parte de torcedores, companheiros ou dirigentes, além de sofrerem represálias econômicas e sociais quando denunciam práticas discriminatórias. Episódios de discriminação racial no futebol, por exemplo, têm provocado boicotes e mobilizações importantes de atletas e sindicatos, pressionando tanto clubes quanto entidades reguladoras a adotar mecanismos mais severos de responsabilização e punição, incluindo multas, jogos com portões fechados e campanhas educativas (OIT, 2019).

Outras dimensões de discriminação, como a LGBTfobia, a xenofobia e a exclusão de pessoas com deficiência, também integram o cenário de violações de direitos no esporte. Atletas LGBTQIA+ denunciam tanto o preconceito velado quanto a hostilidade aberta, frequentemente sendo desestimulados a manifestarem publicamente suas identidades ou sofrendo exclusão de seleções e competições (OIT, 2019, p. 11-12). Debates recentes sobre a participação de atletas trans e intersexo, e políticas que regulam critérios de gênero em diferentes modalidades, expõem frequentes dilemas éticos e legais marcados por disputas quanto à justiça competitiva e direitos individuais (OIT, 2019, p. 10-11). Pessoas com deficiência encontram obstáculos à inclusão plena e reconhecimento, mesmo após avanços trazidos por eventos como os Jogos Paralímpicos; tais barreiras envolvem desde ausência de infraestrutura adequada até disparidades salariais e visibilidade reduzida frente ao esporte convencional (OIT, 2019, p. 13-14).

 

Conclusão

De modo geral, os esportes oferecem, por meio de seu potencial dramático e narrativo, oportunidades contínuas de fascínio e reencontro com o imaginário coletivo. Um exemplo emblemático foi a conquista do primeiro ouro feminino do Chile por Francisca Crovetto. O futebol, assim como outras modalidades esportivas, ocupa espaços de matriz simbólica fundamentais, atribuindo sentido à contemporaneidade e podendo ser interpretado como metáfora presente na literatura, arte, economia, sociedade e política, tanto de maneira integrada quanto em esferas distintas. Por essa razão, o esporte constitui uma prática social séria, ainda que frequentemente se manifeste sob a forma de jogos e brincadeiras.

Para o historiador que reconhece o papel mobilizador da história social e as transformações radicais por que passa o esporte, casos como os de Afonsinho no Brasil, George Eastham no Reino Unido, Curt Flood nos Estados Unidos, Jean-Marc Bosman na União Europeia, entre outros, representam avanços significativos na consolidação de direitos para atletas, obtidos através de diferentes meios de luta. Destacam-se iniciativas como a promulgação da lei do passe livre no Brasil, a eliminação do teto salarial, a garantia da liberdade de escolha de empregadores e a livre circulação transfronteiriça na União Europeia. Trata-se de trajetórias de reivindicação no mundo esportivo que transcendem recordes e títulos, concentrando-se na conquista de direitos fundamentais.

A FIFPro reúne exemplos como  Jimmy Hill, Zahir Belounis, o time femino do afeganistão e outros atletas que, por meio de suas trajetórias, exerceram papel de agentes de transformação social além das fronteiras do esporte, promovendo mudanças, gerando impacto e provocando reflexões no tecido social. Diante de todo esse cenário, perdura o problema: Como o esporte pode ser simultaneamente um vetor de dominação (reforçando hierarquias de classe, raça e gênero, exploração e individualismo) e, ao mesmo tempo, um espaço de emancipação social?

 

Referências

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. El trabajo decente en el mundo del deporte: documento temático para el debate en el Foro de diálogo mundial sobre el trabajo decente en el mundo del deporte (Ginebra, 20-22 de enero de 2020). Departamento de Políticas Sectoriales. Ginebra: OIT, 2019. FIFPRO. FIFPRO Pioneers. Disponível em: https://fifpro.org/en/fifpro-pioneers?skip=true. Acesso em: 28 de ago. 2025.

 

FERRERAS, Norberto O. La OIT y los procesos migratorios para América Latina: De la Primera Guerra Mundial a la ola migratoria posterior a la Segunda Guerra Mundial. Periplos: Revista de Investigación sobre Migraciones, v. 6, n. 1, p. 40–60, 2022. Organização Internacional do Trabalho.

 

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