A NBA e a cesta de Joe Biden

Nesta quarta-feira, dia da posse de Joe Biden em Washington, Donald Trump descumprirá a tradição democrática de comparecer à cerimônia. Assim como no momento em que perdeu a reeleição em novembro, Trump provavelmente estará jogando golfe. A predileção pelas tacadas, no entanto, não é uma característica meramente pessoal do quadragésimo quinto presidente do país.

Com os perfis tão antagônicos de Biden e Trump, a eleição do ano passado expandiu o abismo entre os dois Estados Unidos: o progressista e o conservador. E é possível afirmar que a segregação característica da cultura americana está presente também nas quadras e nos gramados.

Portanto, em meio à polarização, nada mais sintomático que o presidente mais à direita da história pratique o esporte comprovadamente mais conservador dos Estados Unidos.

Biden, à esquerda, observa pontapé inicial de partida de basquete. Trump, à direita, joga no seu campo de golfe em Bedminster, no estado de Nova Jersey

O gráfico abaixo é de 2019, um ano antes da eleição, faz parte de uma pesquisa de mercado da consultoria especializada “Statista” e relaciona as preferências políticas e esportivas dos americanos. No eixo horizontal, quanto mais uma modalidade está à direita, mais inclinados ao Partido Republicano são os torcedores e praticantes. Quanto mais uma modalidade está à esquerda, mais inclinada ao Partido Democrata. No eixo vertical, quanto mais acima a modalidade está, maior o engajamento dos fãs na hora de votar. E quanto mais abaixo estiver a modalidade, menor participação em votações. O tamanho de cada círculo representa proporcionalmente a quantidade de torcedores que acompanham e praticam cada esporte. O golfe masculino, de Trump, está representado por um círculo vermelho no canto superior direito, ou seja, é o que está mais inclinado aos Republicanos e com o segundo maior comparecimento às urnas, perdendo apenas para o golfe feminino.

A Associação de Golfistas Profissionais dos EUA tem a menor proporção de atletas e espectadores na faixa dos 20 e 30 anos. Fonte: Statista

Porém nada se compara em visibilidade ao tamanho da NFL, a liga de futebol americano, que detém as maiores audiências e receitas no país. Os brancos são 77% dos torcedores que vão a estádios e assistem aos jogos na TV mesmo com um significativo número de jogadores negros. A explicação é que muitos destes atletas não jogam nas posições de destaque nos times, como quarterbacks. Aqueles com mais de 55 anos são 37% dos fãs; 34% tem entre 37 e 54. Apenas 29% são jovens, com menos de 37 anos. Há portanto um perfil sociocultural que, em geral, se comporta como “conservador” e “nacionalista” nas eleições.

Não foi à toa que Trump reclamou quando um jogador negro se ajoelhou durante o hino americano em uma partida da NFL em 2017 (vídeo abaixo). O presidente pediu a demissão de Colin Kaepernick, que atuava no San Francisco 49ers, pela atitude em repúdio à violência policial contra negros. E desde então, Kaepernick está desempregado por ter “incomodado” torcedores e dirigentes brancos e conservadores.

O episódio evidenciou como Trump poderia ganhar apoio junto aos fãs da bola oval na corrida pela reeleição, dada a influência midiática que o esporte possui no maior mercado consumidor do planeta.

Porém, após o assassinato de George Floyd, os protestos antirracistas viraram o jogo. Outra liga, a de basquete, entrou em quadra com uma série de iniciativas de marketing sem precedentes no esporte mundial contra o racismo e já esquentando o clima para a campanha presidencial que começaria nos meses seguintes.

A NBA já era o campeonato cujos fãs são mais inclinados a votarem no Partido Democrata. A audiência é notoriamente a mais diversa entre as grandes ligas dos Estados Unidos, como mostra o gráfico abaixo. Além disso, no início da temporada 2018/2019, mais de 33% das equipes da NBA tinham treinadores negros; 42% delas assistentes técnicos negros; três assistentes eram mulheres. Quanto aos atletas, 81,9% eram negros na temporada passada.

Distribuição da audiência da NBA conforme (de cima para baixo) gênero, idade, raça e renda. Fonte:The Atlantic

Como mostra o primeiro gráfico no início do texto, o grande “vacilo” dos fãs da NBA em 2016, em especial entre os negros, foi o baixo engajamento nas eleições daquele ano, reproduzindo um comportamento semelhante aos eleitores democratas naquela eleição, em que a candidata Hillary Clinton foi derrotada por Trump. O índice de comparecimento em 2016 foi de 52,18%, o menor em eleições presidenciais desde 2000. Já quando Barack Obama foi eleito pela primeira vez, em 2008, a comunidade negra compareceu em massa, garantindo participação de 61,6% dos eleitores.

O desafio era estimular o voto entre os eleitores negros e democratas. O contexto era favorável: Biden tinha apelo entre os afroamericanos por ter sido vice de Obama, o movimento “Black Lives Matter” chegava ao auge de visibilidade no mundo e craques como Lebron James estavam mais politizados que nunca.

Ameaçada pela pandemia de Covid-19, a temporada 2019–2020 continuou em quadras onde se passaram a ler as palavras “Vote” e “Justice”. Jogadores vestiam camisas com a inscrição “Vidas negras importam” nas costas, no lugar dos seus nomes.

Na eleição, Biden se tornou o candidato mais votado em dois séculos de disputas presidenciais nos Estados Unidos. Negros e habitantes das metrópoles votaram em maior número, pelo correio ou presencialmente, o suficiente para Biden por fim ao período mais sombrio da política do país oficialmente hoje. Uma jogada arriscada em que foi preciso driblar os brutamontes do futebol americano e não ser atingido por uma bola de golfe, mas que recebeu de bandeja a contribuição do melhor basquete do mundo. Cesta.

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