O jormachismo esportivo precisa entrar em pauta

O Esporte Espetacular, da Rede Globo de Televisão, exibiu durante os domingos 10[1] e 17[2] de janeiro de 2021 uma série de reportagens assinada por Henrique Arcoverde e produzida por Amanda Kestelman, Bárbara Mendonça e Renata de Medeiros sobre a Violência contra mulher. Ainda antes do início da matéria, a apresentadora Bárbara Coelho contextualizou o cenário nacional de violência contra a mulher no Brasil mostrando como acusações de agressões, estupros e assassinatos têm aparecido no cenário do futebol brasileiro.

Fonte: globoesporte

O assassinato de Eliza Samúdio foi lembrado e ilustrado com uma fala do, então, goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, em 2010, naturalizando agressões entre casados. A agressão do, atualmente, goleiro do Atlético GO, Jean, sobre a ex-mulher Milena Bemfica, em 2019, também apareceu na matéria. Apesar de ter seu contrato suspenso com o São Paulo, o goleiro seguiu atuando na série A do Campeonato Brasileiro. A ex-esposa criticou que seu agressor possa seguir sua trajetória futebolística como se nada tivesse acontecido.

A matéria argumentou que o caso Robinho marcava um novo momento na relação entre o futebol e a violência contra a mulher. O jogador condenado na Itália por violência sexual de grupo, em 2017, foi contratado pelo Santos, em 2020, enquanto aguardava julgamento de recurso. A divulgação de escutas telefônicas de conversas do jogador sobre o episódio com seus amigos fez com que torcida, imprensa e, especialmente, patrocinadores pressionassem o clube que suspendeu o contrato do jogador condenado novamente em dezembro de 2020 ainda tendo um último recurso na justiça italiana disponível.

No segundo domingo de apresentação da matéria, além de uma rápida definição sobre o que seria “ser homem”, a reportagem questionou a importância da intervenção nos clubes em que muitos postulantes a atletas acabam convivendo em ambientes de pouco contato com a diferença de gênero dificultando a criação da empatia nas relações com as mulheres. Existiu certo consenso na fala dos entrevistados e das entrevistadas na responsabilidade das instituições em procurar criar um ambiente que permita o surgimento de outro tipo de masculinidade desde as categorias de base.

A narrativa da reportagem encerrou apostando na necessidade de uma maior valorização da presença das mulheres no futebol com cargos de destaque. Se evidencia como hipótese que uma maior presença de mulheres permite a criação de espaços com menos machismo. Regiani Ritter, repórter de campo na década de 1980 e 1990, lembrou que ao contrário dos homens que tinham seus erros transformados em piadas, os erros dela eram associados a seu sexo/gênero seguido das ordens de retorno ao fogão ou à cozinha. A árbitra FIFA Edina Alves, que será a primeira mulher da história a apitar uma partida do campeonato mundial de clubes de futebol masculino em 2021, afirmou que ainda tem seus erros justificados por ser uma mulher.

Fonte: terceirotempo

Me parece muito importante que um programa tão relevante de nosso jornalismo esportivo consiga pautar temas tão urgentes em nossa cultura. Nas linhas que seguem, porém, quero pensar o quanto esse mesmo jornalismo esportivo, entendendo-o como espaço de disputa e não como um espaço homogêneo, ajuda a construir essa narrativa masculina e machista no ambiente do futebol de espetáculo jogado por homens em nosso país.

Com Arlei Damo (2006) entendo que o futebol de espetáculo pode ser dividido em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os mediadores especializados são os profissionais que trabalham na espetacularização do futebol e produzem narrativas sobre os eventos futebolísticos. Eles podem ser profissionais da comunicação ou ex-atletas e ex-dirigentes que teriam a função de “explicar” os eventos para o público que, de alguma forma, não seria “apto” a lê-los sozinho. Esses mediadores, apesar de suas diferentes origens, são chamados, costumeiramente, de cronistas esportivos e são os principais atores do que se pode nomear de jornalismo esportivo ou de imprensa esportiva.

As narrativas construídas pelo jornalismo esportivo produzem significados diversos e ampliam o fenômeno futebolístico. Segundo as teorias literárias e culturais, as narrativas possuem centralidade na cultura. São as histórias que nos permitem entender as coisas e pensar no mundo e em nossas vidas como certa progressão lógica que leva a algum lugar (CULLER, 1999). As narrativas possuem a potencialidade de nos ensinar diferentes pontos de vista e de entender as posições dos outros. Ao mesmo tempo, as narrativas policiam autorizando ou desautorizando a construção de significados, por exemplo, sobre a masculinidade.

No primeiro domingo de exibição, a reportagem lembrou a acusação de 4 ex-jogadores – Henrique, Fernando, Eduardo e Cuca (atual treinador do Santos) – do Grêmio que em uma excursão à Europa, em 1987, mantiveram relações sexuais com uma menina de treze anos. O jornalista Cláudio Dienstimann que acompanhou a excursão reconheceu, passados mais de trinta anos, que, infelizmente, a cobertura não pensou no ponto de vista da menina agredida. Segundo ele, o foco da reportagem era ver os atletas em liberdade para retornarem ao Brasil. A reportagem lembrou que a época parte da torcida apoiou a atitude dos jogadores. Podemos ler esse apoio em um diálogo muito estreito entre clubismo e machismo, não necessariamente nesta ordem. Carmen Rial lembrou que a imprensa esportiva gaúcha fez o mesmo. Junto com Miriam Grossi ela publicou um texto na revista Mulherio em que mostrava algumas das impressões dos torcedores e da imprensa gaúcha naquela oportunidade. Acompanhando o retorno dos quatro agressores, elas afirmaram que a “crônica esportiva (…) conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vítimas de um ‘juiz nazista’ e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma ‘travessura’ inconsequente” (1987, p. 3). Em uma das falas, o jornalista Lauro Quadros tentou “ensinar” para o público o que poderia se imaginar ser certo consenso cultural da época (ou ainda estaria entre nós?):

(…) eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender, não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do Grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer (GROSSI; RIAL, 1987, p. 4).

Em 2020, o ex-jogador Caio Ribeiro, hoje comentarista esportivo, se autorizou a dar o “benefício da dúvida” a Robinho afirmando que apenas a justiça deveria julgá-lo. Aparentemente ele não se sentia confortável em criticar a conduta do jogador, naquele momento já condenado em primeira instância. Após acesso a novas reportagens o comentarista modificou sua percepção: “Na hora que eu vejo, ainda mais eu que tenho uma filha menina, a forma como ele se dirige à vítima, a forma baixa como ele fala do estado da menina… Cara, me caiu mal. Me deu dor de estômago”[3]. Curiosamente o reforço de seu posicionamento aparece na sua posição enquanto homem, pai de menina. A percepção de violência ainda aparece na relação entre homens. A lógica dessa justificativa que aproxima a agressão de um homem ao sofrimento de outro homem, pai de menina, não estabelece a plenitude da humanidade para as meninas ou mulheres. Se ele não fosse pai de uma menina, não seria possível criar empatia e condenar a violência contra mulheres?

Muito mais do que as opiniões sobre casos de violência extrema, o problema de nosso jormachismo esportivo está em suas ações cotidianas. Ele vai da absurda defesa do comportamento machista de um treinador como realizada por Maurício Saraiva:

Guto Ferreira gosta de mulher, é casado, não sei se tem filha, mas certamente não tem nada contra mulheres. (…). O mundo da bola ainda é assim. Muito homem junto, mulheres recém começando a ocupar a arquibancada e muitas ainda mais atentas ao bonitinho do que ao bom jogador. Também as mulheres estão na transição de gostar do futebol pelo futebol, capazes de ir ao futebol sem marido, amigo ou namorado. Então, todos em aprendizado. [4]

E também é alimentado pelas “brincadeiras” do Carlos Cereto que pergunta sobre novela para Ana Thaís Matos[5], o Peninha Bueno mandando a Eduarda Streb[6] voltar para a cozinha… Escondidas atrás de “piadas”, essas manifestações dão pouca margem para que a violência apareça. Para as ofendidas acaba sendo oportunizado apenas o lugar de mal humoradas. Nas redes sociais os torcedores cobram engajamento de jornalistas mulheres que “ousaram” reclamar do machismo em alguma oportunidade ao mesmo tempo em que o silêncio dos jornalistas homens não é colocado em questão.

Após classificar o Grêmio para final da Copa do Brasil nesse interminável 2020, Renato Gaúcho – machista quando perde “até mulher grávida faria gol na gente” – voltou a fazer uma manifestação machista, desta vez após uma vitória. Questionado sobre ter menos posse de bola que o adversário, Renato contou uma “historinha”:

Teve um cara que pegou uma mulher bonita e levou ela para jantar. Levou para jantar à luz de velas, conversou bastante. Saiu do restaurante, foi na boate e ficou até às 5 horas da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Aí, na boate, chegou um amigo meu, conversou com ela 15 minutos e levou ela para o motel. Entendeu? Se não entendeu outra hora eu explico. Meu amigo ganhou o jogo [7]

Para Cosme Rímoli, do R7, “Este é Renato Portaluppi, finalista da Copa do Brasil 2020…”[8]. Na conta do Instagram do Fox Sports Brasil a fala foi acompanhada de risos:

No Programa Redação Sportv, o apresentador Marcelo Barreto chamou a jornalista Renata Mendonça para tentar entender se a escolha das palavras de Renato foi boa ou ruim. Renata reforçou como a frase do treinador objetificava as mulheres ao definir que o objetivo dos homens seria apenas levá-las ao motel mostrando que a única importância da mulher seria satisfazer o homem, e pelo exemplo do treinador, sexualmente. Ela reforçou que não seria possível “inverter” a “piada” uma vez que os homens, em nossa cultura, não são entendidos como objetos para satisfação dos desejos das mulheres[9]. Ao mesmo tempo em que é bastante produtiva a participação das mulheres nessa discussão, essa metodologia acaba desconvocando os homens para o debate sobre o machismo. Um homem não seria qualificado para ver o machismo presente nesta manifestação?

A frase de Renato parece fazer tanto sentido dentro da lógica desse jormachismo esportivo que a conta do Instagram da Fox Sports Brasil já a replicou ao ilustrar a vitória de uma equipe com menor posse de bola.

Situações como essa mostram que esse machismo atravessa as narrativas do futebol de espetáculo no Brasil. Frases como a de Renato, Lauro Quadros, Caio Ribeiro, Carlos Cereto, Peninha Bueno e tantos outros não são atitudes individuais de sujeitos desajustados. Ao contrário, elas fazem sentido nessa péssima lógica machista da nossa cobertura esportiva.

Esse é mais um espaço de enfrentamento contra as desigualdades de nossa cultura. Pautar esse jormachismo esportivo é urgente. E ela é uma luta de todos os que militamos neste espaço como profissionais, pesquisadores e torcedores. Nós, homens, não temos o direito de terceirizar o protagonismo deste enfrentamento às mulheres. Precisamos nos posicionar ao lado delas nesta trincheira e não podemos abrir mão de agir quando situações como essa, infelizmente, se repetirem.

 


[1] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9166660/. Acesso em 23/01/2021, às 13h34.

[2] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9185792/. Acesso em 23/01/2021, às 16h44.

[3] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/caio-ribeiro-fala-sobre-o-caso-robinho-tem-que-pagar-como-qualquer-outra-pessoa.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 9h32.

[4] Disponível em: http://globoesporte.globo.com/rs/blogs/especial-blog/vida-real/post/guto-e-mulheres.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h22.

[5] Disponível em: https://www.lance.com.br/fora-de-campo/ana-thais-matos-incomoda-com-pergunta-machista-apresentador.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h13.

[6] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2018/04/27/peninha-pede-desculpas-apos-piada-machista-e-comentarista-chora-ao-lembrar.htm. Acesso em 24/01/2021, às 11h16.

[7] Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/renato-compara-posse-de-bola-a-pagar-jantar-e-nao-levar-mulher-ao-motel-31122020. Acesso em 24/01/2021, às 11h31.

[8] Ver nota anterior.

[9] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sportv/programas/redacao-sportv/video/renata-mendonca-sobre-fala-de-renato-nao-seria-nem-engracado-se-ele-fizesse-o-contrario-9143513.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 11h56.

Referências:

CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. São Paulo: Beca Produções, 1999.

DAMO, Arlei Sander. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.39-72.

GROSSI, Mirian; RIAL, Carmem. Os estupradores que viraram heróis. In: Mulherio. Fundação Carlos Chagas, outubro 1987, p.3-4.

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