A paisagem sonora dos estádios de futebol e o poder do rádio na propagação desse som

Por vezes o futebol pode ser comparado à religião. Os jogadores são ídolos, o uniforme é considerado um manto sagrado, o goleiro faz defesas milagrosas e o estádio… Ah o estádio… Ele seria o templo! O lugar onde os torcedores (fiéis) se deslocam com tantos outros torcedores (como em uma procissão) para apoiar seu time durante 90 minutos com gritos e cânticos. O estádio de futebol, de fato, é um espaço de experiências. Experiências essas que são realçadas pelo som. Mascarenhas (2002, p. 84) diz:

Na condição de elemento central na cultura brasileira, o futebol tem sido capaz de gerar objetos marcantes na paisagem urbana, como os estádios, dotados de notável centralidade funcional e simbólica. (MASCARENHAS, 2002, p. 84).

Os sons dentro do estádio, ao longo do tempo, trazem memórias afetivas ao torcedor. As construções esportivas representam uma maneira de territorializar aquele local e seus arredores como espaços dos respectivos times, e os sons gerados reforçam essa territorialização. Cabe ressaltar que é, nesse próprio espaço, que os torcedores possuem um contato direto com outros torcedores e os jogadores de seu time – aumentando a ideia de grupo cultural. Para Mascarenhas (2007, p.62): 

Acompanhar um evento esportivo dentro de um estádio lotado e vibrante em seus cânticos de incentivo ou desafio pode ser uma vivência única. Os estádios são assim portadores de memória e importantes conotações simbólicas. (MASCARENHAS, 2007, p. 62, grifo nosso).

Nos dias atuais, a fidelidade dos torcedores ao time de coração, além de encher as construções esportivas de norte a sul do país em campeonatos estaduais ou nacionais, proporciona também audiência considerável em programas futebolísticos. Seja da televisão, rádio e, recentemente, dos podcasts e transmissões através de plataformas de compartilhamentos de vídeos, como YouTube, os sons gerados no estádio são narrados e comentados, de modo que, o ouvinte há quilômetros de distância consegue informações sobre a partida de futebol.

O presente texto dará destaque ao rádio, por entender que o aparelho possui características mais regionais e tem feito com o futebol uma boa parceria há décadas. Nos anos de 1950, por exemplo, ocorreu a popularização de partidas de futebol narradas pelo rádio e até a atualidade, dentro e fora dos estádios, centenas de rádios são ligados para se ouvir a partida através da voz de radialistas. Sobre a história do rádio e do futebol, Soares (1994) e Bezerra (2008) dizem que:

O rádio esportivo foi essencial para a transformação do futebol em esporte de massa e um importante complemento na definição do rádio como meio de comunicação de massa. O ponto de partida deste processo é a primeira narração detalhada de um jogo de futebol. (SOARES, 1994, p. 17).

Ao perceber sua força, os donos das poucas rádios existentes no Brasil resolveram investir no esporte a partir de informações enviadas por telefone pelos repórteres da emissora, em vez de apenas noticiar os resultados das partidas durante a programação, como fizeram até 1931. O rádio dividiu espaço com os jornais e acabou dominando o jornalismo esportivo, com a vantagem da narrativa ao vivo e do detalhe. (BEZERRA, 2008, p. 38, grifo nosso).

Tanto o futebol quanto o rádio estão no cotidiano de milhares de pessoas, muitas vezes em conjunto, seja ao se analisar as décadas iniciais da união entre o esporte e o veículo de comunicação, ou mesmo nos dias atuais, que a narração de um jogo de futebol ainda se encontra presente, seja pelo radinho de pilha ou pelo celular. Independentemente do período de análise, algo é indiscutível: são inegáveis as memórias, por vezes afetivas, que o rádio e o futebol criam, quando analisados de forma conjunta. 

Observa-se que a partir do rádio, a paisagem sonora dos estádios chega a diversos locais, como casas, carros, comércios etc., ocorrendo então, de fato, essa difusão espacial dos sons típicos dos estádios. O rádio então se mostra tendo um papel importante na difusão espacial desses sons gerados nas construções esportivas.

O som do estádio e da própria partida, quando difundidos espacialmente através do rádio, aumenta a identidade dos torcedores com seu time de coração através das ondas sonoras. E, como já ressaltado, o rádio, diferente da televisão, apresenta características muito mais regionais, pois as emissoras de rádio, mesmo quando filiadas a grandes redes de TV, acompanham quase que exclusivamente os times da cidade ou região. Por ser um meio de difusão que consegue chegar a tantos espaços, o rádio auxilia também na reafirmação de uma cultura ou imaginário, fortalecendo laços dos torcedores com outros torcedores e claro, com o próprio clube.

Sons continuam reforçando culturas e constituindo geossímbolos (aqui entendidos como construções que fortalecem uma identidade). Portanto, paisagens sonoras reafirmam a identidade de grupos culturais – e entendemos que isso é validado também para o caso do futebol: seja pelos sujeitos envolvidos no espetáculo (profissionais ou passionais), seja pelo território onde se é realizado o espetáculo (estádios ou arenas).

A sonoridade do evento – percebido in loco ou escutado via onda e satélite – reforça os laços da torcida, que, unida, empurra o time para a vitória, fazendo com que o estádio também seja um território ao qual milhares de pessoas se sintam pertencentes, ou mesmo tratem como uma “segunda casa”. A convergência de Sons e Estádios cria uma paisagem muito singular: a “paisagem sonora” típica das partidas de futebol. Ou, uma espacialidade onde o identitarismo acaba se materializando graças a um conjunto de sonoridades produzidas por diversos sujeitos (torcedores, jogadores, narradores). Mazer et al., 2020, p. 25 afirmam que: 

Por meio de sons, a torcida acredita levar o time que apoia rumo à vitória. Aqui, as técnicas sônicas desempenham tarefas tão díspares quanto viabilizar o uníssono ou a balbúrdia nas arquibancadas; incrementar a vontade dos jogadores para quem torce, ou minar a moral dos adversários; disputar o espaço das arquibancadas, não só contra rivais, mas também contra grupos torcedores do mesmo time, influir no ritmo e andamento do jogo, entre outras. (MAZER et al., 2020, p. 25).

Acredito que o(as) rádio(s) é(são) um veículo com poder de reforçar a ideia de culturas regionais – e tem feito isso com o futebol através da difusão do som dos estádios. Como visto até o momento, foi significativo o encontro do rádio com o futebol. Afinal, o aparelho fez com que os sons, outrora em apenas um espaço, chegassem a outros, fazendo com que a paisagem sonora se expandisse, ganhando outros territórios, sendo por isso um importante objeto de estudo, seja da Geografia, do Jornalismo e de outras ciências.


Referências bibliográficas:

BEZERRA, Patrícia Rangel Moreira. O futebol midiático: uma reflexão crítica sobre o jornalismo esportivo nos meios eletrônicos. 2008. 151f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade Cásper Líbero, São Paulo.

MASCARENHAS, Gilmar. Várzeas, operários e futebol: uma outra geografia. GEOgraphia. Niterói, v. 4, n. 8, p. 84-92, 2002.

MASCARENHAS, Gilmar. Do campinho ao grande estádio: lugares e expressões na cultura do futebol. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 57-68, 2007

MAZER, Dulce H.; ARRUDA, Mario; CASTANHEIRA, José C. S.; CONTER, Marcelo B.; LUCAS, Cassio B.; MARRA, Pedro S. O estudo das sonoridades: perspectivas teóricas e epistemológicas. In: CASTANHEIRA, José C. S.; MAZER, Dulce H.; MARRA, Pedro S.; CONTER, Marcelo B.; LUCAS, Cassio B.; ARRUDA, Mario (Org.) et al. Poderes do som: políticas, escutas e identidades. Florianópolis: Insular, 2020. p. 13-49.

SOARES, Edileuza. A bola do ar. São Paulo: Summus, 1994.

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