“A SAF só funciona se o dono não for pão-duro”: percepções dos torcedores brasileiros sobre a Sociedade Anônima do Futebol

Por Guilherme Pedrosa Em 2021, o futebol no Brasil sofreu uma alteração com a implementação da Lei da Sociedade Anônima do Futebol, ou SAF. Como resultado, os clubes brasileiros agora estão autorizados a operar como empresas, obter investimentos e até mesmo abrir capital no mercado de ações (Planalto, 2021). Sob a nova lei, os clubes têm a opção de criar corporações de futebol, e vender até 90% de suas ações para investidores externos (Forbes, 2022). Desde que as novas regulamentações foram aprovadas, 14 equipes (35% dos clubes) nas duas principais divisões do país tornaram-se ou estão em processo de se tornar SAFs. Cinco dos clubes mais influentes do país já se converteram no modelo: Cruzeiro, Bahia, Atlético Mineiro, Botafogo e Vasco da Gama, por exemplo. Neste contexto, a SAF cria um paradoxo, uma vez que estas organizações passam a enfrentar o desafio de equilibrar o interesse mercadológico e o crescimento econômico com a manutenção das tradições locais e culturais de cada clube. Por outro lado, a SAF é tida como uma nova oportunidade para alguns clubes no Brasil, uma vez que mesmo os grandes clubes do país têm enfrentado dificuldades financeiras, como o Cruzeiro, Botafogo e Atlético Mineiro, que não muito tempo atrás ostentavam dívidas superiores a 1 bilhão de reais (ESPN, 2023). Mas, e o interesse dos torcedores nessa história? Com o objetivo de compreender as perspectivas dos torcedores, um estudo conduzido pela Kent State University, em parceria com o Coletivo Marta da UFMG, focou no novo modelo de propriedade dos clubes brasileiros. A pesquisa buscou elucidar três questões principais: 1) Qual é a percepção dos torcedores em relação à SAF? 2) Quais são as oportunidades e os riscos identificados pelos torcedores? 3) Como os torcedores consomem conteúdo relacionado à SAF? Isso inclui a frequência, as fontes de informação e os tipos de narrativas presentes.
Textor anima torcida do Botafogo. Foto: Vitor Silva/Botafogo
Para a pesquisa, realizamos uma revisão da literatura, abrangendo estudos similares conduzidos em diferentes contextos, como na Premier League nos anos 2000 e no Campeonato Alemão, que possui legislação específica sobre propriedade e investimento no futebol – a “50+1”, além de pesquisas relacionadas às práticas e culturas torcedoras. Com base nesses estudos, desenvolvemos um questionário sobre os modelos de propriedade e o engajamento dos torcedores com seus clubes no Brasil. O questionário esteve disponível durante dois meses para que os torcedores pudessem respondê-lo entre os meses completos de junho e julho de 2023. No total, 220 torcedores brasileiros responderam à pesquisa. Entre os respondentes, 90% (n = 198) passaram na questão de verificação de atenção. Dentro desse grupo, 85,15% (n = 170) eram do sexo masculino e 14,15% (n = 28) do sexo feminino. A maioria dos respondentes tinha entre 25-34 anos (41,8%) e entre 35-44 anos (31,4%), e possuía diploma universitário (63,4%). Em média, os participantes torciam por seus clubes há 24,61 anos, com o tempo variando de menos de um ano a 55 anos de arquibancada. Pouco mais da metade da amostra (55%) não era sócio-torcedor, enquanto 45% pagavam pelo benefício. Torcedores de 25 clubes de todas as divisões do Campeonato Brasileiro de Futebol (Séries A, B, C, D e sem divisão nacional), e de todas as regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) estavam representados nos dados. 91,4% dos clubes citados eram da Série A, seguidos pela Série B (4,1%), Série C (1,5%), Série D (2%) e Clubes sem Divisão (1%). 88% dos torcedores demonstraram conhecimento correto sobre o modelo de propriedade de seus clubes.

Identificação com o futebol brasileiro

Os torcedores brasileiros demonstraram um forte vínculo emocional com seus clubes, com uma média de 4,34 em uma escala de 1 a 5, indicando uma sólida identificação. A maioria dos participantes (68%) registrou uma pontuação acima de 4, refletindo esse forte laço com suas equipes. Quando se trata da Lei SAF, a maioria dos torcedores (71%) afirmou ter contato com conteúdo relacionado à lei pelo menos uma vez por semana na mídia em geral. Em relação aos assuntos específicos sobre seus clubes, 75% dos torcedores disseram estar expostos a essas informações, semanalmente. É possível perceber que informações gerais sobre a SAF podem confundir os torcedores, enquanto materiais focados nos clubes são considerados mais esclarecedores. Conteúdos gerais tendem a ser amplos e genéricos, não abordando os aspectos que afetam cada clube individualmente. Por outro lado, os materiais direcionados aos clubes fornecem informações mais específicas e contextualizadas, fazendo mais sentido para os torcedores, já que estão relacionados diretamente às características de cada equipe. Isso permite uma melhor compreensão de como a lei afeta cada clube em particular. Além disso, uma das hipóteses iniciais da pesquisa era de que o desempenho esportivo pudesse interferir em como os torcedores percebem a SAF. Os dados mostram que não há uma relação forte ou significativa entre a posição do clube na tabela de classificação e as opiniões sobre a propriedade privada e o apoio ao clube. Por outro lado, o gênero e o nível de escolaridade têm um impacto significativo na compreensão da lei. Pessoas com maior nível de escolaridade tendem a entender melhor as especificidades da legislação, enquanto os homens tendem a ter um entendimento geral maior do assunto. Idade, anos de arquibancada e renda não parecem influenciar muito na compreensão do modelo de propriedade da Lei SAF.

Percepções dos Torcedores Brasileiros sobre a SAF

Os torcedores brasileiros revelaram uma visão majoritariamente positiva da Lei SAF, com uma média de 4,14 em uma escala de 1 a 5, refletindo um forte respaldo à legislação. No entanto, a torcida aos clubes transcende as questões de propriedade, como evidenciado pelo índice de 4,6 em 5, indicando que continuariam apoiando seus times independentemente do modelo de gestão. Além disso, a pesquisa revelou que o afeto dos torcedores por seus clubes permanece inabalável, com uma média de 4,45 em 5, independente de técnicos e jogadores. Curiosamente, o estudo também revelou que a SAF não altera sentimentos de afeto em relação aos clubes, com uma pontuação de 2,02 em 5 sobre o potencial aumento do amor, orgulho e importância do clube caso este se torne uma SAF. Esses achados apontam para uma relação complexa entre os torcedores e o modelo de gestão do clube, destacando a importância dos valores arraigados na identidade clubística.

Oportunidades?

Além disso, algumas oportunidades trazidas com a SAF, pelo menos no discurso, são vistas com desconfiança pelos torcedores. 16,3% têm uma visão positiva sobre a possibilidade de os clubes brasileiros se tornarem marcas globais, principalmente pelo temor de clubes brasileiros virarem times satélites de equipes europeias, ou apenas fornecedores de jogadores para outros centros. Outra oportunidade vista com desconfiança pelos torcedores brasileiros é a preocupação em relação à transparência, com apenas 45,2% dos fãs expressando confiança no aumento de transparência nos clubes por meio das SAFs. Nesse contexto, os torcedores demonstram preocupação com a acessibilidade e o aumento dos custos do futebol devido aos investimentos privados, com 73% expressando inquietação nesse aspecto. Além disso, 69% estão receosos de que os investidores possam negligenciar as tradições locais e a base de torcedores dos clubes. A importância do envolvimento dos torcedores nas decisões dos clubes é destacada por 82% dos participantes, enquanto 68% sentem que suas próprias opiniões têm pouco ou nenhum impacto nas escolhas da gestão. A percepção predominante (72,7%) é de que os investidores priorizam o lucro em detrimento do desempenho esportivo ou da opinião dos fãs.

Tensões entre o torcer e gerir

Os torcedores há tempos defendem uma maior participação nas operações dos clubes, destacando um desejo por um engajamento mais efetivo dentro das instituições. Existe uma crença generalizada entre os torcedores de que os presidentes e proprietários dos clubes privilegiam o sucesso em detrimento dos valores fundamentais da agremiação, levantando preocupações sobre os interesses comerciais que podem sobrepujar os valores tradicionais. Em média, os entrevistados concordam que os investidores privados podem tornar o futebol menos acessível e mais caro, desconsiderar as tradições locais e os torcedores dos clubes, e dar prioridade aos lucros em detrimento do desempenho esportivo ou das opiniões dos fãs. Esses dados evidenciam uma tensão entre as aspirações financeiras dos investidores privados e os valores tradicionais, culturais e éticos apreciados pelos torcedores. Como parte do instrumento de pesquisa, os fãs foram convidados a escrever comentários livres sobre seus sentimentos e opiniões sobre a SAF. Um dos comentários reflete o contexto mencionado acima. “A SAF só funciona se o dono não for pão-duro. É preciso investir nos clubes brasileiros, mas, por outro lado, o investimento não dá carta branca a esses novos donos para fazerem o que quiserem com nossos times. Do jeito que estava, não pode ficar, mas eles têm que respeitar a história e ouvir o maior patrimônio dos nossos clubes, os torcedores” (participante anônimo).
Referências ESPN. Ranking de maiores dívidas tem “trio do bilhão” e Corinthians quase lá, mas nem só isso explica problema do seu clube. Acesso em: 7 mar. 2024. FORBES. Goal For Brazilian Soccer Clubs: Attract Highest Bidder. Acesso em 18 fev, 2022, from Forbes website. PLANALTO. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. 6 ago. 2021. Acesso em: 6 mar. 2024.

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