A tão merecida taça

O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes.

A frase acima – que, de tão lapidar, poderia ser atribuída às páginas rodrigueanas por compreensível equívoco – foi cunhada em verdade não por um literato, mas por Arrigo Sacchi, técnico de equipes como o histórico Milan que deslumbrou o mundo no fim dos anos 80 e da esquadra italiana derrotada pela Seleção nos ditosos pênaltis de 1994. Eu, nascido praticamente um mês após o mesmo Sacchi conquistar seu único título da Serie A, num remoto ano de 1988, jamais havia experimentado um evento que dotasse sua máxima de tamanho sentido como o que segue a nos assolar. Refiro-me, por óbvio, à pandemia da covid-19 – cujas consequências supostamente levariam a humanidade, num necessário e tardio despertar, a revisar a dinâmica de suas interações em prol da construção de uma sociedade mais razoável, compreensiva e justa. Ao menos no que diz respeito ao papel do esporte nesta pretensa equação, no entanto, faltou combinar tais termos com os atores da alta cúpula de nosso futebol.

O que foi preciso ignorar para que o Flamengo levantasse, ao cabo de um dia com 1.261 perdas mais causadas pelo coronavírus no país, sua trigésima sexta taça estadual ao derrotar o Fluminense – aquele do qual se desgarrou em 1911, num litígio de contornos míticos, para só então iniciar suas campanhas pelos estádios deste mundo? Em que poço sem fundo nos encontramos quando também o futebol, geralmente reconhecido como um dos maiores pilares comunitários de nossa cultura, reduz-se a mero dispositivo de acirramento de ânimos, mobilizando para tanto posições obscurantistas e indiferentes ao sofrimento do outro? Afinal, o que o Campeonato Carioca de 2020 deixará registrado para a posteridade acerca de quem somos hoje?

Para além do célebre provérbio, a menção a Sacchi ao abrir este texto se torna ainda mais elucidativa se atentarmos para o fato de que Milão, metrópole que o projetou para o planeta desde o banco do San Siro, está localizada na região da Lombardia – o epicentro inicial da pandemia na Europa. Foi na Itália que o vírus, após alarmar de início populações orientais, anunciou-se terrivelmente para o Ocidente, logo estupefato em face de toda a provação deflagrada na terra do calcio. No mês de março, quando as cenas geradas pelo coronavírus ainda eram uma novidade assistida à distância por nós, causavam espanto as atualizações que anunciavam um cômputo ainda inédito de 600 mortes diárias. Atônitos, vivíamos a cada amanhecer a descoberta de uma nova dimensão para a fatalidade. Março, contudo, logo ficou para trás. O vírus, como havia de ser, não apenas nos alcançou, mas também encontrou pelas bandas de cá um sem número de tipos capazes de potencializar em muito seus danos. O luto italiano de outrora parecia nos comover mais que o presente padecimento brasileiro.

Convenhamos, somos capazes de banalizar o horror de um modo que nos é peculiar – há, digamos, um jeitinho todo brasileiro de lidar com a mortandade amplificada por desajustes sociais. Pois bem, nesta semana, enquanto a bola chutada por Vitinho desviava no zagueiro Nino e, ao encontrar o caminho das redes tricolores durante os últimos instantes da final do Campeonato Carioca, sacramentava outra conquista de um já emblemático elenco rubro-negro, o hospital de campanha montado no interior do complexo esportivo do Maracanã contabilizava mais algumas despedidas para os registros. Que elas decerto não ocorreram por haver uma partida de futebol no estádio ao lado é um fato evidente. Ainda assim, que tenha sido realizada uma partida de futebol a despeito da luta ainda travada por tantos pela própria vida é outro fato evidentemente sintomático. Não nos deixemos enganar por celebrações temporãs: o gol de Vitinho, como todos aqueles que o antecederam desde o retorno do futebol no Rio de Janeiro, nasceu sob o signo do descaso ostensivo em relação ao pranto dos nossos. A troco exatamente de quê? Receio que jamais será possível responder a esta questão apelando para o bom senso.

Fotos: Del Piero - 09/02/2013 - UOL Esporte
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Voltemos, por exemplo, à Itália de Sacchi. Por lá, medidas de isolamento social foram adotadas e respeitadas em ampla escala por seus habitantes. Apenas após a diminuição significativa dos números relativos à covid-19 a bola voltou a rolar: no dia 13 de junho, sem permissão de acesso de torcedores ao estádio, a Copa da Itália foi responsável pela retomada do calendário de competições. Quando chegou a vez de o Campeonato Italiano reiniciar suas atividades, uma semana depois, o país registrou 262 novos infectados – confirmando queda da média diária de casos pela 12ª semana seguida – e 49 óbitos. Na tentativa de encontrar um difícil arranjo entre saúde e economia, preservando a credibilidade de suas ligas, protocolos similares foram adotados em datas próximas nos três principais centros futebolísticos do globo: Alemanha, Espanha e Inglaterra. A Federação Holandesa, por seu turno, encerrou o campeonato local sem definição de vencedor ou rebaixados. Na França, outro caso insólito: o Paris Saint-Germain foi declarado campeão nacional após desfecho prematuro da Ligue 1 em respeito às orientações de saúde pública.

Mas, se além-mar a possibilidade de cogitar a entrada dos times em campo esteve sempre condicionada à melhora dos índices sanitários e à séria observância a diretrizes científicas, a famigerada Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) – graças a uma aliança pactuada com os pequenos clubes a ela filiados, com o Vasco da Gama e, sobremaneira, com o Flamengo – determinou o retorno de seu cada vez mais moribundo campeonato em tensa reunião arbitral havida no dia 17 de junho, em que tão somente Botafogo e Fluminense se opuseram de modo incisivo à maioria formada. Segundo levantamento empreendido por um consórcio que reuniu grandes veículos de imprensa devido à possível manipulação de dados por parte do próprio governo do país da subnotificação, houvera então 31.475 novos diagnósticos e 1.209 mortes por covid-19 no Brasil. Com efeito, a informação a seguir exige reflexão: quando Flamengo e Bangu se enfrentaram pelo Campeonato Carioca no dia 18 de junho, em meio a 1.204 vidas concidadãs perdidas pela doença, o Campeonato Italiano sequer havia recomeçado. Dada a aviltante resolução confirmada pela FERJ, a dupla de agremiações discordante, em flagrante desvantagem numérica e em termos de influência política no cenário nacional, aventou a hipótese de acionar a Justiça Comum em caso de derrota nos tribunais desportivos ao pleitear a suspensão do retorno do torneio no estado – um caso extremo e suscetível a muitas polêmicas jurídicas. Na prática, porém, não houve revogação do veredicto: o show tem que continuar…

Posto isso, seria possível redigir daqui em diante um texto recapitulando, passo a passo, os imorais episódios proporcionados pelo Carioca desde então. Elementos não faltariam: a lamentável associação entre FERJ, Flamengo e demais clubes contra Botafogo e Fluminense, os únicos que mantiveram uma postura minimamente louvável ao longo de todo este imbróglio (recuso-me a crer que haverá aqui acusações de clubismo); a cobrança de despesas operacionais até dez vezes maiores nos jogos dos dissidentes em sinal de represália; o impedimento de vários jogadores irem a campo defender as cores de seus uniformes devido a inevitáveis testagens positivas para o coronavírus durante o auge da crise; o conluio político que deu à luz a Medida Provisória 384, alterando os princípios concernentes aos direitos de transmissão das partidas com o campeonato em curso e gerando flagrante instabilidade jurídica; o desrespeito, por parte dos dirigentes da Gávea, às prescrições da mesma MP – exarada graças à defesa de seus interesses de ocasião, prontamente abandonados em seguida, junto ao Palácio do Planalto –, na medida em que lutaram para transmitir um Fla-Flu com mando de campo sorteado para o time das Laranjeiras, portanto detentor exclusivo da prerrogativa de veicular as imagens ao vivo segundo a tal normativa de tintas rubro-negras etc. Essas etapas, de todo modo, estão fartamente documentadas e são consabidas.

Quanto àquilo que se restringe às quatro linhas – que, por forças de ordem metafísica, é capaz de suspender o redor pelos minutos transcorridos até o apito derradeiro –, não seria difícil, por exemplo, elencar os inúmeros porquês de este Flamengo, apesar de seus dirigentes e mesmo jogando em intensidade abaixo da regular, seguir como o time a ser batido nos torneios que disputar – e isto independentemente da confirmada transferência de Jorge Jesus, mentor da fase de glórias vigente, para o Benfica. No que tange ao Fluminense, poder-se-ia elogiar a conduta digna do clube também dentro de campo, pois, embora tecnicamente inferior ao arquirrival, ele se manteve vivo na disputa ao longo dos últimos três clássicos, logrando inclusive suplantar o forte adversário na disputa pela Taça Rio. Ou seria cabível observar que, ao tricolor, faltam sem dúvida contundência no arremate – o time segue precisando criar ao menos três boas chances de gol para converter uma, aproveitamento fatalmente comprometedor diante de um oponente mais qualificado – e segurança nas laterais (Gilberto cometeu erro crasso de posicionamento e marcação no gol marcado por Pedro no primeiro jogo da final; Egídio, por sua vez, arriscou um bote incompreensível sobre Gabigol no lance que resultou na virada rubro-negra naquele confronto e, ademais, falhou na saída de bola que acarretou o último tento do torneio). O que acabou por contaminar a escrita, entretanto, foi um sentimento mais amargo do que qualquer justa derrota esportiva, e anterior a toda análise focada em aspectos menores neste momento.

Que os cartolas brasileiros foram e são historicamente incapazes de conceber o futebol nacional em sua dimensão coletiva, na qual cada clube necessariamente depende da grandeza dos outros, é algo notório desde que dedico boa parte da vida a torcer numa arquibancada. Que as paixões particulares por nossos clubes não raro tendem a estabelecer leituras parciais e demasiadamente interessadas também não equivale a nenhuma novidade. Entretanto, que o futebol sirva como instrumento político vil até mesmo durante a mais grave crise sanitária desde a gripe espanhola de 1918 é fenômeno que, se não chega a surpreender, tampouco deixa de abalar ainda mais as convicções em relação ao caráter potencialmente socializante da bola por aqui. Em vez de arena comunitária capaz de congregar diferenças na dor, nem que seja por ensaiada condolência, hoje o esporte sucumbe diante de um cenário em que a morte se fortalece como capital político. No lugar da cultura que alumia, emerge só a pura indústria que massacra simulando afagos.

Estádios, bem o sabemos, constituem um microcosmo da sociedade em que estamos inseridos. Por algum tempo, haverão de permanecer vazios. Apesar disso, o temor no Brasil não surge exatamente pela ausência de torcedores nas arenas do novo século: o verdadeiro risco é o de que, à primeira oportunidade, elas se façam cheias, em mais uma experiência de entretenimento fúnebre. Desejo não faltou à Prefeitura, que chegou a liberar momentaneamente a presença de público em partidas oficiais. Tal cenário nos conduz à pergunta que serve como epítome destes tempos: e daí? Para os responsáveis pelo desfecho do Campeonato Carioca de 2020, concordar com a sentença de Sacchi afinal pode ser bem simples: basta que, entre as ditas coisas menos importantes da existência humana, possamos elencar o respeito à saúde e à vida, estes valores fora de moda, bem abaixo do futebol – enfim convertido em útil ferramenta a ser submetida à verdadeira senhora de todos nós, a importância das importâncias!: a fria lei do cifrão. Ao fim e ao cabo, vá lá, o desenlace teve sua dose de coerência: angariou a taça o clube cuja direção fez de tudo para merecê-la – ainda que para isso tenha precisado abrir mão da moralidade. Que a recompensa lhe caia bem.

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