Afinal, o que faz a Good Game!, empresa que promete moralizar o futebol brasileiro?

O grande nome do futebol brasileiro nos últimos meses é escrito em inglês, fala francês e nunca chutou uma bola. Trata-se da empresa “Good Game!” (a partir daqui apenas Good Game), que reivindica ser “dedicada a transformar a abordagem da competição esportiva para melhor, trazendo ciência e evidência para garantir resultados competitivos e um esporte mais justo”.

Fundada em 2019, a empresa ficou famosa por detectar comportamentos estranhos de jogadores de um jogo de handebol francês, que posteriormente foram condenados por envolvimento em esquemas de apostas esportivas. Chegou ao Brasil através da SAF do Botafogo, mas agora também é procurada pela SAF do Atlético-MG.

Foto: Good Game!

Com a queda de rendimento do Botafogo na Série A 2023, algo que lhe custou o título inédito na Série A de pontos corridos, a Good Game chegou ao Brasil pelas mãos de John Textor, dono da SAF do alvinegro – que conheceu a empresa francesa após adquirir o clube francês Olympique Lyonnais no início daquele ano.

Isso aconteceu mais precisamente após a derrota de virada para o concorrente ao título Palmeiras, em jogo marcado por um até hoje discutível erro de arbitragem em um lance de expulsão aos 31 minutos do segundo tempo, quando o jogo ainda estava 3 a 1 para o Botafogo. 

Desde então, a Good Game virou uma esfinge. Usada pelo seu contratante como um instrumento indispensável e infalível, capaz de trazer moralidade ao futebol brasileiro, o trabalho da Good Game segue sendo muito pouco compreendido pelo público em geral. Afinal, aparentemente quase ninguém parou para entender de fato a pretensa metodologia científica empenhada pela empresa.

Os primeiros usos dos “relatórios da Good Game” se referiam a erros de arbitragem que teriam sido decisivos para tirar pontos do Botafogo e/ou dar pontos para o Palmeiras, alterando a “pontuação real” da Série A 2023. 

Alguns casos analisados pela empresa vieram a público, quase todos baseados numa lógica bem pouco futebolística. Por exemplo, se um erro de arbitragem no início do jogo foi um gol mal anulado por impedimento, esse deveria ser anotado como gol de fato num “resultado real” definido pelo estudo. Se o “resultado oficial” foi de 1 a 0 para o clube favorecido pelo erro, então para o relatório da Good Game o “resultado real” seria de 1 a 1.

Isso ocorreu de fato no jogo entre Palmeiras e Vasco. O estudo portanto aponta que o Palmeiras deveria ter apenas um ponto no “resultado real”, ao invés dos três pontos do “resultado oficial”.

Essas alterações do placar, que explicariam o favorecimento ao Palmeiras e prejuízo ao Botafogo, seriam definidas também de acordo com um “sofisticado algoritmo” (palavras da Good Game). A promessa do estudo seria a capacidade de detectar, por meio de inteligência artificial, se o comportamento do árbitro era suspeito ou não, mas isso não foi encontrado no estudo de 2023. 

O “mecanismo” da Good Game está descrito no relatório sobre erros de arbitragem que vazou em partes de um processo no STJD – situação em que Textor pede suspensão de punição imposta pelo tribunal por ter acusado a CBF de “corrupção e roubo”.:

O método REF-EVAL usa uma análise multifatorial do desempenho psicológico, biomecânico e tático do jogador, combinado com todas as decisões da arbitragem. O método fornece mais de 99% de respostas corretas em todas as decisões da arbitragem.

O método aciona complexos algoritmos de inteligência articial (IA) para identificar os chamados IRD (Decisão Incorreta de Arbitragem) em oposição ao CRD (Decisão Correta de Arbitragem). Em seguida distinguimos Alto IRD, isto é, erros de arbitragem que afetam diretamente o placar e Baixo IRD, isto é, erros que arbitragem que não afetam diretamente no placar.

Além disso, REF-EVAL distingue IRD (erro) não-intencional em todos os jogos de futebol, do IRD (erro) intencional, para também identificar potenciais esquemas de manipulação de resultado relacionados aos árbitros. O método REF-EVAL é hoje a ferramenta mais avançada para assegurar os resultados das competições e avaliar os árbitros.¹

Logo, se a empresa não detectou comportamento suspeito dos árbitros, deduz-se que foram apenas erros de arbitragem comuns, não favorecimentos propositais.

Mas quem disse isso foi a contratada, não o contratante. Esse detalhe nunca foi explicado amiúde por John Textor em suas muitas entrevistas e declarações bombásticas sobre o tema, até porque não parecia ser o objetivo. Para todos os efeitos, a arbitragem havia definido o resultado do campeonato, não o campo e a bola.

CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas. Da esq. para dir.: Jonh Textor, senador Jorge Kajuru (PSB-GO) e senador Romário (PL-RJ) / Foto: Roque de Sá – Agência Senado

Meses depois, quando da criação da CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas no âmbito do Senado Federal, John Textor volta ao centro das atenções com a Good Game. Agora sim, a empresa teria elaborado um relatório complexo com casos de jogos em que o comportamento suspeito dos jogadores indicaria algum tipo de irregularidade. Nesse caso, envolvimento em apostas.

Como cabe a toda e qualquer CPI que se preze, grande atenção foi dada ao polêmico relatório que provaria que a Série A do Brasileirão 2023 estava manchada, pois eivada de manipulações. Esses dados não vieram a público, mas a CPI alega ter apreciado e enviado às autoridades competentes.

Um dos jogos listados como suspeitos nesse estudo seria o confronto entre Palmeiras e São Paulo, vencido pelo alviverde por 5 a 0, onde jogadores do tricolor teriam se comportado de maneira suspeita. O estudo teria detectado, através da inteligência artificial, movimentos não naturais que resultariam em erros técnicos propositais.

O que ninguém parou para explicar é como um estudo sobre erros intencionais de arbitragem (sem detectá-los) pode se conectar com comportamentos suspeitos de jogadores envolvidos em supostos esquemas de apostas. São coisas de natureza muito distintas, mas jogadas no mesmo caldeirão de teoria conspiratória e espetáculo político-midiático de uma CPI. 

Eis que recentemente, já na Série A 2024, o Clube Atlético Mineiro, também alegando prejuízo esportivo por decisão de arbitragem, contra o mesmo Palmeiras, declarou que irá contratar a mesma Good Game para analisar os jogos da Série A.

O fato da Good Game ainda estar sendo considerada uma empresa capaz de apresentar resultados precisos sobre a atuação mal intencionada da arbitragem e o envolvimento de jogadores em esquemas de apostas, basicamente baseada numa fé bastante problemática em algoritmos e inteligência artificial, que requer um maior escrutínio científico sobre o que a empresa propõe fazer.

Aqui, brevemente, foram discutidos alguns elementos específicos que expõem contradições sobre os usos feitos pelos supostos dados científicos da Good Game. Ainda é preciso uma investigação (acadêmica) mais profunda sobre a validade dos pressupostos metodológicos reivindicados pela empresa.

Por outro lado, também é necessária uma outra investigação (científica) sobre os possíveis conflitos éticos de uma empresa “científica” que é contratada por diferentes clubes para dizer o que eles querem que seja dito, validando teorias conspiratórias, mesmo que não esteja dizendo nada daquilo.


Notas

¹Matéria publicada no Globo Esporte, no dia 23/11/2023. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2023/11/23/estudo-contratado-por-textor-diz-que-resultados-reais-dariam-ao-botafogo-21-pontos-a-mais-que-o-palmeiras.ghtml

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