Rio Grande do Sul, maio de 2024

Calamidade

O início do mês de maio de 2024 registrou uma quantidade de chuvas muito acentuada no Rio Grande do Sul. O fenômeno natural somado ao despreparo da gestão pública produziu a maior calamidade já registrada em nosso estado. Tivemos bairros inteiros devastados. Algumas cidades passaram alguns dias ilhadas em função da destruição da totalidade de seus pontos de acesso. Muitas pessoas precisaram deixar suas casas e precisaram utilizar abrigos provisórios para terem algum tipo de segurança. Lamentavelmente quase duas centenas de pessoas, até o momento, perderam suas vidas.

Internacional e Grêmio, em Porto Alegre, também ficaram sem suas casas. Jogadores e ex-jogadores da dupla atuaram de forma bastante importante no resgate das vítimas do alagamento. Os gramados do estádio Beira-Rio e da Arena do Grêmio passaram vários dias submersos. Como medida emergencial, as partidas dos clubes gaúchos nas competições organizadas pela CBF e pela Conmebol foram suspensas.

Como ponto positivo, foi possível visualizar diversas ações de clubes do Brasil e do exterior. Arrecadação de recursos financeiros e produtos dos mais diversos foram mobilizados pelas mais diferentes instituições. Um amistoso reunindo ex-jogadores e artistas foi realizado no Maracanã, também com o intuito de levantar doações para os atingidos pelas catástrofes no Rio Grande do Sul.

 

Retomada

Alguns clubes ofereceram seus centros de treinamento e estádios para que as equipes gaúchas pudessem trabalhar e as competições retomassem sua “normalidade”. É daqui que começo a fazer algumas questões que me parecem pertinentes para usarmos esse espaço de diálogo para fomentar algumas reflexões. Acredito ser um tanto peculiar entender que com espaço para treinamentos e jogos, os clubes gaúchos estariam prontos para o retorno. Surpreender talvez seja um termo equivocado, mas é interessante pensar como se naturaliza a possibilidade de que os jogadores e o staff desses clubes possam se deslocar e abandonar suas famílias sem maiores consequências para que os campeonatos possam continuar.

A pandemia da Covid-19 nos mostrou que os donos do negócio não estão muito preocupados com a possibilidade de os torcedores comparecerem aos estádios. Na realidade, o direito do horário vendido as empresas transmissoras diziam isso, durante a pandemia, eles – os donos do negócio – abriram mão dos torcedores. Ao contrário da maioria do futebol brasileiro, além do aporte das transmissões, Internacional e Grêmio possuem mais de cem mil sócios cada, o que faz com que essa seja uma de suas mais importantes fontes de renda. Aqui, no Rio Grande do Sul, as propostas de SAF, especialmente essas de único dono, parecem prosperar menos que em outros estados. Internacional e Grêmio, aparentemente, precisam de seus sócios/torcedores.

A torcida do Grêmio tem levado grande público aos seus jogos realizados em Curitiba. Para aqueles que podem ir, parece até uma experiência positiva que engrandece a biografia do torcedor. Existe até uma frase em uma das faixas no estádio Couto Pereira: “sou quem não te abandonou”.

Torcida do Grêmio e a faixa “Sou quem não te abandonou” no estádio Couto Pereira. Crédito: Maxi Franzoi

Lamentavelmente, eu precisei abandonar o estádio nesse período. Talvez eu tenha sido abandonado pelo meu clube. Mais do que pelo meu clube, me parece que o negócio futebol me abandonou. O que não surpreende em nada. Esse negócio se vende através de vínculos e emoções, mas ele é mais um produto que se relaciona com o cliente enquanto o cliente der lucro como qualquer negócio capitalista. Nós que nos fazemos torcedores como uma moralidade pré-capitalista sofremos um pouco, mas sempre que possível voltamos a consumir em nome de um amor, mais bem lido como lucro para aqueles que nos exploram. E não nos enganemos. O processo de expulsão do estádio para mim aconteceu bem depois de outros atores e é muito provável, que do meu lugar privilegiado, eu retorne em seguida ao contrário de outros que não tem mais o estádio de futebol como oportunidade de lazer.

 

Eu jogo contra, mas também jogo com meu adversário

Finalizo essas linhas desconexas (como tudo o que tem se vivido no Rio Grande do Sul desde o início do mês de maio) propondo pensar quais as efetivas possibilidades de união das pessoas a partir de uma grande tragédia. Internacional e Grêmio juntaram a força de suas marcas na tentativa de arrecadar recursos para auxiliar na reconstrução do Rio Grande do Sul. Juntos eles também conseguiram mobilizar outros clubes, confederações e patrocinadores, o que permitiu paralisar o campeonato brasileiro por algumas semanas.

Apesar dessa boa relação, não foi possível chegar a um acordo sobre a possibilidade de que os dois clássicos Grenais do Campeonato Brasileiro fossem disputados em campo neutro. Se aqueles e aquelas que trabalhavam na linha de frente na tentativa de resgatar as pessoas no meio das águas precisavam gastar energia para desmentir mentiras criadas com o objetivo de benefícios pessoais, Internacional e Grêmio também não conseguiram abrir mão de uma possível vantagem ou desvantagem esportiva naquilo que deveria ser um momento de união para nossa reconstrução. Na tragédia, como no período ordinário da vida, o interesse individual se sobrepôs ao interesse coletivo.

Uma última nota: ficar sem ver meu time no estádio pode me deixar chateado, mas não é um problema. Problema é o que estão enfrentando as famílias que perderam seus entes queridos ou que foram e ainda estão desalojadas precisando limpar suas casas na tentativa, muitas vezes frustrada, de salvar um ou outro objeto de valor afetivo. Para essas pessoas deixo minha solidariedade e o desejo de que com a maior brevidade algo próximo do que se poderia entender como normalidade seja estabelecido novamente.

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