Cabecear ou não cabecear, esta é a questão

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Fonte: Página 12

Passei as férias de final de ano na Argentina. Em uma reunião de família, Beni e Mai, de sete e nove anos, respectivamente, convidaram-me para jogar bola – atividade informal, segundo o escritor Juan Sasturain[1], focado na posse e controle da bola que eventualmente torna-se futebol.  Eu aceitei de bom grado. Jogamos um bom tempo com variadas formas de tiros para o gol, “altinha” e “bobinho”. Em um momento da pacífica tarde de verão, Beni e Mai propuseram que eu as ensinasse a cabecear  – isto é, a golpear deliberadamente e com firmeza a bola com suas cabeças. Apesar do seu entusiasmo, hesitei.

Minha hesitação foi baseada nas crescentes evidências científicas, que alertam sobre os riscos associados ao ato de cabecear a bola constantemente, e em uma série de decisões implementadas a esse respeito no futebol infantil pela EUFS – United States Soccer Federation, a federação de futebol dos Estados Unidos.

No ano passado, o The New York Times e a National Public Radio daquele país, entre outros meios de comunicação, relataram pesquisas recentes indicando que os cabeceios frequentes causariam sintomas de comoção cerebral, assim como distúrbios de algumas funções cognitivas. Além disso, eles podem estar relacionados a doenças neurodegenerativas e danos cerebrais de longo prazo, especialmente quando a ação é repetida centenas ou milhares de vezes em partidas e treinamentos ao longo dos anos, especialmente durante os treinamentos.

Por estes motivos, em 2015, a federação de futebol dos Estados Unidos proibiu crianças menores de 10 anos de cabecear  em jogos e de ser ensinados a fazê-lo. Por outro lado, permite o ensino às crianças de 11 e 12 anos, embora apenas 30 minutos por semana, cabecear durante os jogos.

Alguns profissionais de saúde propõem uma posição ainda mais restritiva. Bennet Omalu [2], o primeiro médico que documentou a ligação entre o esporte conhecido como futebol americano, os golpes na cabeça e a encefalopatia traumática crônica – forma neurodegenerativa de demência –  argumenta que as crianças  carecem da “aptidão cérebral” dos adultos, e o cabeceio deve ser proibido até a idade de 18 anos.

Aqueles que se opõem a este tipo de restrição, argumentam que as mesmas são prematuras porque as investigações são inconclusivas. No entanto, a existência de evidências científicas crescentes, que alertam sobre os riscos associados ao cabecear, parecem ser sólidas o suficiente para restringir sua prática no futebol infantil. No caso de crianças, uma suspeita fundamentada de dano potencial constitui um critério razoável. O injustificável é aceitar uma prática potencialmente prejudicial até que seja conclusivamente determinado que não é. O ônus da prova recai sobre aqueles que argumentam que o ato de cabecear é seguro.

Outro argumento daqueles que se opõem às restrições de cabecear na infância é que as crianças não adquirem plenamente uma habilidade fundamental no futebol. Em primeiro lugar, esta afirmação deve ser confirmada por pesquisas em aprendizado e controle motor. Mais importante ainda é perguntar se o desenvolvimento de uma habilidade, por mais primordial que seja para o futebol, isenta aqueles que dirigem esse esporte da responsabilidade de proteger a saúde dos jovens jogadores. Por outro lado, pode ser possível conceber estratégias para ensinar a cabecear sem expor as crianças a riscos desnecessários, por exemplo, usando bolas leves de material macio. Para determinar isso, uma investigação adicional também é necessária.  Finalmente, aqueles que se opõem às restrições de cabecear na infância argumentam que o futebol é um esporte arriscado no qual existem vários tipos de lesões e que o dano potencial da cabeça é enquadrado dentro das características deste esporte. É verdade que jogar futebol apresenta riscos. No entanto, há uma diferença entre as lesões típicas do futebol, que afetam principalmente o sistema músculo-esquelético, e aquelas que afetam o sistema nervoso. Usando a terminologia da filósofa norte-americana Martha Nussbaum, isso pode levar à perda ou dano permanente à capacidade humana fundamental de formar uma concepção do bem e de se engajar em reflexões críticas sobre o planejamento da própria vida. Proteger essa capacidade na infância é essencial para promover o que os filósofos chamam de o direito das crianças a um futuro aberto. Este direito requer manter o máximo de opções possíveis para que, na idade adulta, as crianças de hoje possam escolher, de forma autônoma, viver suas vidas. Nesse sentido, restringir o aceno na infância protege esse direito, que inclui uma possível futura decisão autônoma de jogar futebol e cabecear ou não.Minha hesitação diante da proposta de Beni e Mai de ensiná-los a cabecear foi curta. Não importa muito o que eu fiz, mas o que eu deveria ter feito à luz do que se sabe sobre o assunto: explicar-lhes os riscos de cabecear, seu impacto na infância e, se tudo correr bem, no futuro,  poder escolher se cabecear ou não. De um jeito ou de outro, o por-do-sol nos encontrou em partidas intensas dois contra um com a bola no pé, trocando passes. Pode ser útil se a comunidade do futebol também hesitar sobre o caráter e a conveniência de cabecear na infância. Tal hesitação pode tornar o futebol e à infância das crianças, mais saudáveis.

[1] Juan Sasturain nasceu em 1945, no interior da província, e vive na cidade de Buenos Aires desde que chegou para estudar e jogar futebol aos dezoito anos, em 1964. Professor de Letras formado pela UBA, foi docente universitário no começo dos anos 1970, enquanto lhe foi permitido. Também desde essa época trabalha com jornalismo. Especializado nos gêneros literários considerados marginais, dedicou-se a escrever em diferentes veículos sobre quadrinhos, cartum, futebol e literatura policial. Ao final da ditadura na Argentina, começou a trabalhar nas Ediciones de la Urraca, primeiro colaborando em Humor, logo depois como responsável por Super Humor e, posteriormente, como criador e chefe de redação da histórica revista de quadrinhos Fierro, entre 1984 e 1987.

[2] Dr. Bennet Omalu, patologista forense , é o responsável pela descoberta da encefalopatia traumática crônica (ETC ou CTE, em inglês). Identificou pela primeira vez a ETC durante uma autópsia realizada em Mike Webster, ex-center do Pittsburgh Steelers, em 2002. O diagnóstico – e as inúmeras negações de uma ligação disso com o futebol americano – foram contadas no filme Concussion (Um Homem Entre Gigantes, em tradução para o Brasil). No filme de 2015, Omalu é interpretado por Will Smith.

* Texto originalmente publicado em 27/01/2019 no site Página 12

** Cesar Torres é doutor em filosofia e história do esporte. Professor da State University of New York (Brockport)

*** Tradução: Juan Silvera  – Doutorando PPGCom/UERJ

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