Entre o capacete e a câmera: a performance das equipes e do piloto de Fórmula 1 na era digital
O esporte-espetáculo refere-se à prática esportiva em sua versão de alto rendimento, amplamente comercializada pelas mídias de massa. Mais do que transmitir sons, imagens e resultados, ele propaga ideias, opiniões e valores simbólicos que influenciam a cultura e o imaginário social (Rodrigues & Montagner, 2003). Entre as modalidades que se destacam nesse cenário, o futebol ocupa papel central por sua presença transversal nas diversas camadas sociais. No entanto, mesmo esportes tradicionalmente associados a nichos elitizados — como o tênis e a prestigiada Fórmula 1 — vêm se reinventando nesse ecossistema, aderindo às lógicas de visibilidade, consumo e engajamento próprias do ambiente digital.
Na contemporaneidade, esse processo evidencia o caráter heterogêneo do fenômeno esportivo: ainda que cada modalidade possua normas, regras e tradições próprias, o esporte adquire novos traços de acordo com o contexto midiático e sociocultural em que é inserido (Marques et al., 2008). Assim, o esporte-espetáculo se desdobra em múltiplas camadas semânticas e formas de manifestação, revelando uma elasticidade que frequentemente cria, recria e contrapõe narrativas, ora reforçando valores estabelecidos, ora desafiando-os.
Nesse cenário, as redes sociais intensificam e remodelam essas dinâmicas, transformando a maneira como consumimos e vivemos o esporte. Elas alteram não apenas a dinâmica da audiência, mas também influenciam diretamente a construção do fenômeno esportivo enquanto cultura e estrutura. Vivemos imersos em um ambiente marcado pelo imediatismo, pelo engajamento e por estratégias de marcas voltadas à maximização de alcance e fidelização. Nesse contexto, destaca-se a personalização do consumo, em que algoritmos e corporações entregam conteúdos sob medida para os fãs, ampliando a sensação de pertencimento e moldando narrativas de acordo com suas preferências.
A Fórmula 1 nunca foi apenas sobre velocidade. Desde suas origens, espetáculo, técnica, poder e jogos políticos constituem os pilares da categoria. Contudo, nos últimos anos, o esporte passou a trafegar também por outro tipo de circuito: o das redes sociais. E, entre o capacete e a câmera, os pilotos deixaram de ser apenas atletas de elite para se tornarem performers de si mesmos em tempo quase integral.
Hoje, os bastidores das corridas não vivem apenas nas transmissões oficiais. Estão nos stories, nos reels, nas fotos profissionais com legendas cuidadosamente editadas — não apenas pelos perfis oficiais da categoria, mas também pelas equipes e pelos próprios pilotos. Estão nos sorrisos compartilhados com celebridades nos paddocks, nos bastidores dos treinos, nas viagens e no cotidiano encenado. O Instagram transformou radicalmente a maneira como os pilotos são vistos, seguidos e interpretados.
O piloto fora da pista
Sempre se entendeu que, para chegar à Fórmula 1, não basta apenas ter talento. O fator financeiro sempre foi decisivo — tanto para o ingresso quanto para a permanência dos pilotos na categoria. No entanto, no cenário atual, além da velocidade, o carisma tornou-se um elemento fundamental. Pilotos como Lewis Hamilton, Lando Norris e Charles Leclerc já não se comunicam apenas pelo rádio com suas equipes: falam diretamente a milhões de seguidores nas redes sociais, que, a partir de suas postagens e aparições, constroem julgamentos e ressignificações de suas imagens públicas.
Figura 1 – Publicações do perfil do Instagram de Lewis Hamilton
Imagem: Reprodução do Instagram
As redes sociais tornaram-se parte do “jogo” da F1 contemporânea: um novo campo onde se disputam visibilidade, influência e valor de mercado. A performance do piloto, portanto, ultrapassa a técnica. Ela é mediada por câmeras, patrocinadores, assessorias de imagem e algoritmos. O capacete protege, mas a câmera expõe. E o que se mostra — ou se omite — revela muito das dinâmicas entre esporte, espetáculo e sociedade.
Instagram como palco: o feed como grid
No Instagram, o feed funciona como uma vitrine. As postagens dos pilotos transitam entre treinos, moda, vida pessoal e ativismo — sempre com estéticas e palavras cuidadosamente selecionadas. Essa curadoria de imagem constrói um “eu digital” alinhado às expectativas dos fãs, das marcas e da própria Fórmula 1 como produto global.
A série Drive to Survive, da Netflix, intensificou esse fenômeno. Entre 2020 e 2021, a audiência global da F1 cresceu 5%, e nos Estados Unidos, aumentou 58% — reflexo direto da narrativa dramatizada da série. Os pilotos se transformaram em personagens midiáticos, e o Instagram reforça essa dramaturgia com imagens aparentemente espontâneas, mas cuidadosamente compostas. O que antes era bastidor virou espetáculo — e o espetáculo, rotina.
Além disso, a tentativa de aproximação com o público tem transformado os atletas em figuras percebidas como mais acessíveis, por meio de interações virtuais que reforçam uma vivência no sentido “gente como a gente”. Um exemplo disso são as publicações que exploram as reações dos pilotos no quadro do YouTube Grill the Grid, no qual eles participam de desafios como adivinhações, jogos de lógica e testes de memória. A série se tornou um sucesso ao apostar na humanização dos competidores, no engajamento espontâneo, em atualizações constantes e em um formato acessível, capaz de atrair tanto fãs assíduos quanto espectadores ocasionais.
Figura 3 – Publicações do perfil oficial da Fórmula 1 sobre o quadro “Grill the grid”
Imagem: Reprodução do Instagram
Corpo, imagem e capital simbólico
Se os pilotos agora performam nas redes, também é preciso observar quem pode ocupar esse espaço. A Fórmula 1 segue sendo um esporte majoritariamente masculino, branco e eurocentrado. Lewis Hamilton, por exemplo, é a principal exceção visível — e um dos mais ativos no uso das redes para pautas como o antirracismo e a crise ambiental, tensionando as normas tradicionais do paddock.
Pilotos como o brasileiro Gabriel Bortoleto e o australiano Oscar Piastri reforçam uma certa diversificação global, sobretudo ao mobilizarem identidades nacionais e regionalizações da torcida.
No feed de um piloto, o corpo não é apenas instrumento esportivo: é também signo e símbolo. Corpo disciplinado, veloz, estilizado — que comunica performance, mas também status, juventude, masculinidade, nacionalidade e estilo de vida. A imagem do piloto torna-se capital simbólico: convertida em seguidores, contratos e influência.
Conclusão
A performance dos pilotos, hoje, ultrapassa os limites do asfalto. No circuito das redes sociais, eles competem por atenção, engajamento e valor simbólico com a mesma intensidade com que disputam posições na pista. O Instagram, e outras plataformas digitais, tornaram-se uma extensão do paddock — um espaço onde imagem, narrativa e estratégia de marca se entrelaçam de forma calculada, mas apresentada como espontânea. Nesse novo cenário, o treino e a corrida já não bastam: é preciso estar presente, gerar conteúdo, alimentar interações e sustentar uma narrativa que dialogue com fãs, patrocinadores e com a própria indústria do entretenimento.
A Fórmula 1 digitalizada continua a fascinar, mas por razões que vão além da velocidade pura: ela nos prende pela dramaturgia construída fora das curvas, pelo jogo de signos e símbolos que molda a percepção pública dos pilotos e das equipes. Entre o capacete que protege e a câmera que expõe, emerge um novo espetáculo, no qual vencer significa também conquistar corações, telas e algoritmos. Nesse sentido, a pista física e a pista digital se complementam, formando um mesmo circuito de disputas — técnico, simbólico e comercial — onde cada volta conta, cada postagem pesa e cada reação é parte do jogo.
Mais do que um esporte, a Fórmula 1 tornou-se um produto cultural global, atravessado por questões de identidade, representatividade, marketing e consumo. E, como todo produto cultural, ela é continuamente reinterpretada, remodelada e reposicionada de acordo com as lógicas midiáticas e as demandas do público. Assim, a corrida pela vitória permanece, mas o troféu, hoje, também se mede em seguidores, alcance e influência.
Referências
RODRIGUES, E. F.; MONTAGNER, P. C. Esporte-espetáculo e sociedade: estudos preliminares sobre sua influência no âmbito escolar. Conexões, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 55–70, 2015. DOI: 10.20396/conex.v1i1.8640806. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conexoes/article/view/8640806. Acesso em: 11 ago. 2025.
MARQUES, R. F. R.; GUTIERREZ, G. L .; ALMEIDA, M. A. B. de; O esporte contemporâneo e o modelo de concepção das formas de manifestação do esporte. Conexões, Campinas, SP, v. 6, n. 2, p. 42–61, 2008. DOI: 10.20396/conex.v6i2.8637803. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conexoes/article/view/8637803. Acesso em: 11 ago. 2025.