Continuidades heroicas do nacionalismo esportivo

Em meados de maio de 1924, poucos dias antes de viajar a Paris para participar dos Jogos Olímpicos daquele ano – que constituía a estreia argentina nesse evento – a equipe de esgrima foi homenageada no Jockey Clube.

Após várias lutas de exibição, Román López, o presidente da Federação Argentina de Esgrima, tomou a palavra para se despedir dos esgrimistas. Manifestou-lhes a esperança de que respondessem “como bons, com a vontade e a firmeza que vos caracteriza, à confiança que em vós depositamos”.

Fonte: turismo.buenosaires

Também lhes disse que teriam a missão de demonstrar “a fidalguia e vigor de nossa raça, dessa raça de valentes e abnegados que nos deu a pátria, o grito de liberdade e independência, lançado em 25 de maio de 1810”.

Agregou seu desejo de que “conquista[ssem] louros, para depositá-los ao seu regresso, ao pé do glorioso pavilhão azul e branco, símbolo sagrado da nacionalidade argentina”. Esse, manifestou antes de concluir seu discurso, seria “o melhor presente que podeis oferecer à pátria no 108º aniversário do juramento de sua independência”.

No mês passado, quase cem anos depois, a Associação de Futebol Argentino (AFA) agradeceu, por meio de um vídeo e “em nome de todo o povo argentino”, que Lothar Mattthäus doara a camisa que Diego Armando Maradona vestiu na final da Copa do Mundo de 1986. Matthäus e Maradona, capitães das seleções da Alemanha e da Argentina, respectivamente, haviam trocado suas camisas ao fim da partida.

Em um momento, a voz em off do vídeo diz: “Ouçam amigos o grito sagrado. Porque junto da bandeira que hasteou Belgrano, o sabre curvo com o qual cruzou San Martín, chegou a solo pátrio a armadura com a qual lutou até a morte Diego Armando Maradona”.

Estas frases acompanham imagens de homens jovens com a camisa nacional, dos jogadores argentinos festejando durante a final, de um menino balançando a bandeira argentina em uma aldeia supostamente cordilheirana, do sabre, da camisa de Maradona em uma vitrine e deste se benzendo e celebrando, vestindo-a.

É notório como os dois acontecimentos abertamente enlaçam o esporte com a luta independentista, com suas figuras culminantes e com a bandeira nacional, e como expõem aos esportistas como representantes do húmus autóctone.

Assim, ao início tanto do século XX como do século XXI, a nação argentina é, em boa medida, imaginada através do esporte, que, como postulou o antropólogo Eduardo Archetti, é uma das “zonas livres de uma cultura”, propensa à criatividade nacionalista. Embora na década de vinte do século passado o futebol permitisse uma módica presença de outros esportes na narrativa da identidade nacional; na atualidade, a sobrerrepresentação futebolística obtura essa possibilidade.

A narrativa que enlaça esporte e nação, proposta pela AFA e pelas forças do mercado, converge principalmente no futebol. Por outro lado, essa narrativa resgata e gira em torno de Maradona, mesmo em sua morte, convertido há décadas em um herói nacional – “valente e abnegado” na fórmula de López, e cruzado por alegrias e tristezas, paradas e recomeços, acertos e erros – junto a Belgrano e a San Martín. Depois de tudo, sua camisa é presenteada como uma armadura simbolicamente equivalente à bandeira criada por aquele e ao sabre utilizado por este.

Fonte: Globo Esporte.

Também é notório como os dois acontecimentos reforçam que a narrativa esportiva da nação tem sido eminentemente masculina. Não só não houve mulheres na equipe de esgrima que viajou a Paris para participar dos Jogos Olímpicos de 1924, nem em toda a delegação argentina no evento, pois López em seu discurso de despedida aos esgrimistas apontou que no agasalho “não falta a nota de distinção, elegância e beleza da dama argentina, hoje como ontem e como sempre, entusiasta e palpitante a todas as manifestações da vida nacional”. Entusiasta e palpitante, mas não participante.

Por sua vez, no vídeo da AFA as mulheres estão praticamente ausentes. Apesar de sua crescente, embora marcadamente modesta, visibilidade, o esporte feminino segue negligenciado. Nas palavras do sociólogo Pablo Alabarces, como a maioria das narrativas nacionalistas, a relação esporte e nação tem sido “produzida, reproduzida, protagonizada e administrada por homens”, em um exercício de poder que sustenta uma ordem heteropatriarcal.

Lamentavelmente, as desportistas não se permitem sonhar em converter-se em heroínas da nação.

Em uma estupenda nota publicada recentemente, o jornalista Ariel Scher indaga sobre as diversas posturas que os/as torcedores assumiram no desenlace do último campeonato masculino de futebol. Recorrendo a diversos/as especialistas em ciências sociais, enfatiza que os modos de ser torcedor têm variado durante a história do futebol argentino e que estes, com suas avaliações, têm sido naturalizados.

Além disso, ressalta que o posicionamento frente aos variados modos de ser torcedor envolve concepções sobre questões fundamentais como “a ideologia, as visões sobre a condição humana ou a interpretação de que é o que está em jogo neste jogo”. A nota convida a pensar a construção de sentido através do futebol e, de forma mais ampla, do esporte.

Nesse espírito, o velho discurso de López e a nova encenação da AFA manifestam, em conjunto, a estreita relação que os dirigentes esportivos têm articulado entre esporte e nação. Estes acontecimentos sugerem que a articulação dessa relação tem sido contínua, pelo menos, ao longo dos últimos cem anos. Parafraseando a Scher, a maneira que se desenvolveu o nacionalismo esportivo revela um aspecto proeminente do que tem estado em jogo no jogo.

Se as variações históricas dos modos de ser torcedor aludem a fraturas no ethos futebolístico, os dois acontecimentos demonstram uma continuidade na articulação da relação entre esporte e nação. Essa continuidade, com sua história e com suas peculiaridades, é uma construção de sentido, que, como insistiria Scher, deve ser interrogada e desnaturalizada.

Porque a narrativa do nacionalismo esportivo imperante, que supostamente amalgama, não é a única imaginável. No entanto, para imaginar alternativas, simbólicas e materiais, é preciso compreendê-la ou, como propõem os/as especialistas em ciências sociais, interpretá-la. Caso contrário, o status quo continuará a ser aceito e reproduzido como uma manifestação infalivelmente “natural”. E no âmbito social, o “natural” é uma aceitação acrítica do estabelecido como habitual.

Publicado originalmente publicado em relatores.com no dia 02 de novembro de 2022.

Tradução por: Júlio Barcellos.

Revisão por: Leda Costa.

Deixe uma resposta