A história da rivalidade do El Classico espanhol, entre Real Madrid e Barcelona, é longa e sinuosa passando por vários momentos. Muito se discute quando teria começado a ser encarada com tanta gravidade, e qual o papel político das identidades dos clubes – o Barcelona ligado ao nacionalismo catalão, e o Real Madrid representando castilha – movendo a contenda entre eles. Mas, independente dessa discussão, alguns pontos podem ser destacados por acirrarem a rivalidade. Entre eles, a final da Copa del Generalisimo em 1943.
Pré-jogo
A Europa em 1943 encarava a Segunda Guerra Mundial, e embora nominalmente apoiando o Eixo, a Espanha ainda lidava com as consequências da sua Guerra Civil, que instaurou a ditadura franquista, e os deixou de fora do conflito armado europeu.
No futebol, o controle da ditadura de Franco se estendia, e além de gerenciar as diretorias dos clubes e a federação, a competição mais antiga da Espanha ganhou um novo nome, mais uma vez: agora Copa del Generalisimo, em homenagem ao caudillo. Previamente, a competição já havia se chamado Copa del Rey (1903-1932) e Copa del Presidente de la República (1932-1936), refletindo os momentos políticos da Espanha durante o período, passando da monarquia a II República, e, após o fim da Guerra Civil, o novo nome em homenagem ao ditador Francisco Franco, que seguiria até 1976, já depois de sua morte.
Os clubes espanhóis enfrentavam as crises e consequências deixadas pela Guerra Civil, com estádios e sedes destruídos, além da falta de jogadores. No caso do Real Madrid, o antigo estádio do clube, Chamartín, havia se tornado até mesmo uma prisão durante a guerra, e o clube teve sua sede bombardeada e perda de arquivos. A década de 1940, inclusive, é considerada uma das piores na história do clube merengue. O cenário de dificuldades do Real Madrid só começou a mudar exatamente a partir de 1943, com a chegada de Santiago Bernabéu na presidência.
Na Catalunha, região já conhecida pelo sentimento independentista e que foi parte da zona republicana no começo da Guerra Civil, o controle do futebol era visto como uma forma do franquismo de se aproximar da sociedade catalã. O esporte seria um local de construção de uma identidade única do que é ser espanhol, e essa filosofia infiltrou o principal clube de futebol catalão, o Barcelona, na primeira fase da ditadura.
Ainda sobre o cenário do futebol no período, é importante ressaltar que o Real Madrid ainda não era visto como o “clube do regime” e nem o Barcelona como centro da resistência catalã. Ambas as identidades foram sendo construídas ao longo das décadas seguintes. Nesse primeiro momento, inclusive, o clube de futebol mais próximo do governo franquista era o Atlético de Madrid, na época renomeado Atlético Aviación, que chegou a receber subsídios e vantagens do governo.
O confronto
Buscando se reorganizarem, os clubes enxergavam as competições com grande importância. Sendo assim, Barcelona e Real Madrid estavam prontos para se enfrentarem nas semifinais da competição: o jogo de ida no Les Corts, estádio do Barcelona antes da construção do Camp Nou, e a volta marcada para acontecer em Madrid.
A edição anterior, em 1942, havia sido vencida pelo Barcelona, que bateu o Athletic Bilbao por 4×2 na final, disputada em Madrid, como seria de praxe durante o governo de Franco, para facilitar a presença do ditador nos jogos. O clube blaugrana recebeu o troféu diretamente das mãos do caudillo, como foi reforçado pela capa do Mundo Deportivo repercutindo o título.
Buscando o bicampeonato, o Barcelona recebeu o Real Madrid no Les Corts em junho de 1943, e aplicou um placar bem elástico: 3×0 no jogo de ida. Mas as polêmicas do confronto começaram ali mesmo: do lado do Real Madrid, com reclamações da torcida e time em relação ao árbitro, José Fombona Fernández, sobre todos os gols do Barcelona. O primeiro tento, por falta na jogada do gol, o segundo um pênalti mal marcado a favor dos donos da casa e o terceiro gol por impedimento. Já o Barcelona e seus torcedores reclamaram do comportamento do time do Real Madrid, acusando-os de jogo sujo e acusando o árbitro de não marcar as faltas. Pelas vaias e xingamentos, a federação espanhola multou o Barcelona por 2.500 pesetas.
Em Madrid, uma campanha para o jogo de volta foi iniciada. O jornalista mais engajado foi o ex goleiro do Real Madrid, Eduardo Teus, que definiu Les Corts como um “caldeirão em erupção” e que o campo ruim seria o culpado por pelo menos dois gols sofridos pelo clube merengue, o que seria uma injustiça. Ao mesmo tempo que censurou o comportamento dos torcedores do Barcelona de vaiarem e xingarem adversários, influenciou que a torcida em Madrid devolvesse na mesma moeda, inflando ainda mais a atmosfera para a partida de volta.
Em 13 de junho de 1943, foi a vez do Real Madrid receber o Barcelona no Chamartín. O próprio clube soltou uma nota pedindo que os fãs se comportassem bem, o que não obteve muito resultado. Jogadores do Barcelona relatam insultos no caminho até o estádio, além de pedras jogadas no ônibus, além de ofensas ligadas ainda a Guerra Civil e ameaças – de que o time catalão perderia – recebidas até mesmo dos policiais que faziam a segurança do time no estádio.
Em campo, o Real Madrid fez 2×0 em menos de meia hora, e ao final do primeiro tempo o placar já estava 8×0, com direito a expulsões do lado catalão. No intervalo, jogadores do Barcelona se recusaram a voltar a campo, mas segundo depoimentos, foram ameaçados de prisão caso não voltassem para o segundo tempo. Na etapa decisiva, o Barcelona marcou seu gol de honra. Assim, a partida terminou em 11×1, até hoje a maior goleada do El Classico. Ainda assim, a federação multou os dois clubes, furiosa com o comportamento dos jogadores.
O Real Madrid chegou até a final, quando enfrentou o Athletic Bilbao, então um dos mais bem sucedidos clubes espanhóis e de uma área que fora republicana na Guerra Civil, o País Basco. A decisão foi disputada novamente em Madrid, e vencida pelo Athletic Bilbao, com reclamações dos madridistas de que o time basco havia sido beneficiado pela arbitragem.
Pós jogo
Anos depois, diversas narrativas surgiram em depoimentos de jogadores do Barcelona presentes na partida, como explicações para o que aconteceu. De acordo com algumas versões, incluindo do goleiro Argila que estava no banco na partida, um representante do governo entrara no vestiário do time catalão antes da partida e teria dito algumas palavras, provocando medo nos jogadores. Ainda segundo depoimento de Argila, a rivalidade entre os clubes se acirrou, e tornou-se mais política, logo após o episódio na Copa del Generalisimo de 1943.
Poucos anos depois, acontecimentos como o caso Di Stéfano e os enfrentamentos entre as equipes inflaram ainda mais as desavenças, e imagem de Barcelona e Real Madrid como os dois grandes rivais do futebol espanhol foi pouco a pouco sendo construída. O desenrolar do franquismo ainda viu a ascensão do Real Madrid como maior campeão da Europa, e o Barcelona se tornar símbolo da resistência e nacionalismo catalão.
O fim do franquismo não acabou com a rivalidade do El Classico, que se transformou em uma das mais famosas do mundo, e segue escrevendo sua história até hoje. Passando pelos Galáticos do Real Madrid, o super time de Guardiola no Barça, Cristiano Ronaldo e Messi, o El Classico é uma rivalidade viva e em constante disputa.
Referências
González Calleja, Eduardo. “El Real Madrid,¿” equipo de España”? Fútbol e identidades durante el franquismo.” Política y sociedad 51.2 (2014)
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Lowe, Sid. Fear and loathing in La Liga: Barcelona, Real Madrid, and the world’s greatest sports rivalry. Bold Type Books, 2014.