Por Emanuela Amaral [1]
A Copa do Mundo Feminina de 2023 foi um sucesso absoluto e reafirmou que o futebol profissional praticado por mulheres é uma realidade. Seu êxito se expressou de diversas formas, seja na quebra de recorde com o público nos estádios, a crescente audiência nas transmissões ou até mesmo com o avanço da qualidade das partidas.
Essa foi a edição de maior público presente em estádios. Segundo a diretora de futebol feminino da FIFA, Sarai Bareman, a Copa registrou cerca de 1,9 milhões de torcedores nos estádios até a final.[2] Também alcançou números relevantes de audiência nas transmissões dos jogos. No Brasil, mesmo com a campanha decepcionante da seleção canarinha, foi possível observar números importantes de audiência. A Cazé TV, canal do Youtube[J3] que transmitiu as 64 partidas da competição, alcançou mais de uma vez a marca de 1 milhão de dispositivos conectados simultaneamente.[3]
Além disso, foi possível observar a evolução do nível técnico e tático apresentado pelas jogadoras em campo. O primeiro mundial com 32 seleções impressionou por demonstrar que o futebol de mulheres tem evoluído em todo o mundo. Se a expectativa era que as seleções novatas fossem tomar goleadas constrangedoras, isso não se concretizou e, ao contrário, as seleções com menor tradição na modalidade surpreenderam e jogaram de igual para igual com as “grandes seleções”.

Com todos esses números e avanços em torno da competição é difícil não se empolgar. A visão deve ser otimista, mas há indícios em torno do mesmo torneio que indicam que há ainda muita luta para se travar quando falamos dessa modalidade.
Já no início do mundial vimos notícias sobre problemas na seleção de Zâmbia em relação à dispensa de atletas, como a camisa 10 do time, Grace Chanda, que denunciou o técnico, Bruce Mwape, por assédio sexual. A FIFA, durante toda a participação de Zâmbia na competição, não se manifestou e ainda censurou o trabalho de jornalistas que questionaram o técnico sobre as denúncias.[4] Depois de muito barulho sobre o caso, a entidade foi obrigada a se manifestar já na fase de mata-mata, na qual a seleção zambiana já não participava mais, dizendo que o técnico está sendo investigado sobre o caso. Ainda não houve nenhum resultado da investigação até a finalização deste texto.
Também foi possível ver histórias que já estamos cansados de presenciar, como da seleção jamaicana que foi para a Copa graças a uma “vaquinha” feita na internet e principalmente pelo mecenato de Cedella Marley (filha de Bob Marley).[5] Isso porque as jogadoras não receberam estrutura suficiente da federação de futebol do país para ir para a Austrália.
Mas, talvez seja na campeã Espanha que percebamos o ponto-chave[J4] da luta que ainda deve ser travada. É fato que a Espanha é um país europeu, portanto têm maiores condições financeiras, e também por isso tem aumentado seu investimento na modalidade. Não é à toa[J5] que o país pode dizer que é campeão de todas as competições mundiais da modalidade. As vitórias na categoria de base abriram o caminho das espanholas para conquistar o campeonato mundial adulto. Porém , esse investimento foi fruto de mobilização de luta das próprias atletas.
Das 11 jogadoras titulares, 7 eram jogadoras do Barcelona, que pode ser considerado hoje a melhor equipe do mundo, mas que profissionalizou o futebol feminino só em 2016, quando suas jogadoras fizeram um movimento interno de cobrança do clube para isso. No mesmo ano, as jogadoras espanholas romperam o silêncio e denunciaram seu treinador Ignacio Quereda, como autor de vários casos de assédios nos 28 anos que esteve à frente da seleção.[6]
O histórico de assédio é confirmado novamente em um episódio recente da seleção campeã mundial. A imprensa espanhola chamou esse movimento como a ‘revolta de las 15’,em que 15 jogadoras enviaram um manifesto por e-mail à federação questionando a falta de estrutura e denunciando processos de assédio moral por parte da comissão técnica. [7] Essas jogadoras se negaram a serem convocadas a partir daquela data (setembro de 2022) enquanto medidas não fossem tomadas em relação aos problemas que as mesmas apresentavam.
Nesse momento[J8] , a federação abriu uma guerra pública contra as “rebeldes”, manteve o técnico Jorge Vilda, e contratou uma empresa de marketing político para criar uma imagem pública das jogadoras como desertoras e mimadas. O conflito, pelo o que é possível observar nas notícias da mídia espanhola, não foi resolvido. Com pequenos avanços na estrutura oferecida pela federação, parte das jogadoras decidiu voltar atrás para participar da Copa, entendendo que tinham perdido o debate público do conflito.
Apesar da vitória no torneio, que poderia apagar de vez as reivindicações das jogadoras, um ato em meio às comemorações parece ter dado razão para a revolta das atletas. Isso porque, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luís Rubiales, no momento da premiação, deu, a olhos vistos, um beijo na boca de Jenni Hermoso, sem o consentimento da camisa 10 da seleção. Ou seja, a autoridade máxima do futebol espanhol assediou uma atleta em público. O ato foi seguido por muita repercussão e obrigou governantes espanhóis a se manifestarem.
Rubiales em um primeiro momento ofendeu aqueles que apontaram o assédio, mas teve que gravar um vídeo em que aparece constrangido pedindo desculpas. Mesmo com o vídeo constrangedor a pressão da opinião pública foi aumentando em cima do caso. O governo espanhol, chefiado por Pedro Sanchéz, do Partido Socialista Operário Espanhol, de centro-esquerda, entrou com diversas denúncias judiciais contra o presidente da federação. Mas nem os processos na justiça desportiva da Espanha impediram que o Luis Rubiales fosse protagonista, junto aos seus pares, de uma cena que expressa o que são as estruturas de poder no futebol. Rubiales convocou uma assembleia da RFEF para se pronunciar sobre o ocorrido.
Em um discurso de autoafirmação, o cartola conseguiu culpabilizar a jogadora, dizer que estava sendo vítima de um processo de difamação, alegou que as mulheres que o estavam criticando eram falsas feministas e ainda deu créditos única e exclusivamente ao treinador da seleção feminina de futebol espanhol, Jorge Vilda pela vitória da equipe no Mundial, sem ao menos mencionar o trabalho das jogadoras.[8] Após o discurso, uma maioria de homens engravatados aplaudiram o presidente da RFEF de pé. Esse cenário é uma verdadeira alegoria da reafirmação do poder masculino no futebol.
Importante ressaltar que houve resposta ao discurso de Rubiales, todas as jogadoras campeãs mundias da Espanha se manifestaram repudiando o ato e juntas divulgaram uma carta dizendo que não voltarão a vestir a camisa da seleção espanhola até que haja uma mudança na direção da federação. Outros poucos jogadores homens também se manifestaram dizendo que abrirão mão da convocação caso Rubiales continue no cargo. Jornalistas, políticos, e gente influente em todo mundo encampou os protestos, e a tag #SeAcabó tomou conta da pauta pública mundial. Aparentemente, dessa vez, o dirigente agressor terá que responder pelos seus atos. Por enquanto, a FIFA suspendeu o presidente por 90 dias e estuda endurecer ainda mais as sanções caso a RFEF insista em manter Rubiales na presidência.[9]
Esse episódio demonstra que, apesar dos avanços que o futebol profissional de mulheres teve nos últimos anos, há uma mudança importante que ainda não foi alcançada na modalidade: quem detém o poder.
É inegável a importância da popularização da modalidade e dos números alcançados, isso deve ser comemorado. Mas se não tivermos poder de fato para as jogadoras, e se quem estiver nos lugares em que se tomam as decisões, como nas presidências das Federações Nacionais da modalidade, não forem pessoas realmente comprometidas com o futebol feminino e com a equidade de gênero, o avanço será incompleto.
Os lugares de poder masculinos estão calcados nas sociedades mais antigas da humanidade, e esse é muitas vezes medido junto à capacidade desses homens de silenciar mulheres (BEARD,2018). Ainda são homens como Bruce Mwape e Luis Rubiales que detêm o poder no futebol profissional de mulheres. São eles que trabalham para manter as mulheres em silêncio.
Romper com o silenciamento e tomar o poder é um desafio complexo, mas que deve ser um horizonte a ser buscado por quem quer impulsionar a modalidade. Há muitas que já trabalham para isso, quanto mais mulheres perceberem isso, mais serão os motivos para comemorarmos a cada final de Copa do Mundo.
Versão final do texto enviada no dia 31 de agosto de 2023.
Referências Bibliográficas:
BEARD, Mary. Mulheres e poder: Um manifesto . São Paulo: Crítica; 1ª edição. 28 março 2018.160p.
[1] Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós Graduação em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
[2] Disponível em: < https://www.terra.com.br/nos/de-maior-publico-a-atleta-trans-as-barreiras-que-a-copa-feminina-2023-derrubou,258e1ca951e362e47f720a538a1e6d3ewtfc7fp7.html > . Acesso em: 20 de agosto de 2023.
[3] Disponível em: < https://trivela.com.br/futebol-feminino/copa-do-mundo-feminina/copa-audiencia-recordes-brasil/> Acesso em:20 de julho de 2023.
[4] Disponível em: < https://ge.globo.com/futebol/copa-do-mundo-feminina/noticia/2023/07/25/zambia-tem-coletiva-encerrada-apos-perguntas-sobre-abuso-sexual.ghtml> Acesso em: 20 de agosto de 2023.
[5] Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/copa-do-mundo-feminina/noticia/2023/08/02/filha-de-bob-marley-transforma-jamaica-para-fazer-historia-na-copa-feminina.ghtml> Acesso em: 21 de agosto de 2023
[6] Saiba mais no documentário ‘Romper el silencio. La lucha de las futbolistas de la Selección’ . Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=O6B-dmw0spE&list=WL&index=66&t=592s> Acesso em:21 de agosto de 2023.
[7] Disponível em: < https://www.relevo.com/futbol/mundial-femenino/paso-juegan-espana-respuestas-conflicto-20230720100443-nt.html> Aceso em: 21 de agosto 2023
[8] Discurso completo disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=N9R7XYq1nLA> Acesso em: 31 de agosto de 2023.
[9] Disponível em: < https://www.espn.com.br/futebol/copa-do-mundo/artigo/_/id/12497021/fifa-suspende-rubiales-provisoriamente-beijo-forcado-jogadora-espanha > Acesso em: 31 de agosto de 2023.