Moralidade, ética e a cultura do ilegal, e daí?

No último dia 11 de setembro, a Fifa anunciou o banimento de três jogadores brasileiros do futebol: o atacante Ygor Catatau, ex-Vasco e que defendia o clube iraniano Sepahan desde o início do ano, Gabriel Tota, ex-volante do Juventude, e o goleiro Matheus Gomes, ex-atleta do Sergipe. Outros oito jogadores tiveram punições de 360 a 720 dias de afastamento por envolvimento no esquema de apostas exposto pela operação “Penalidade Máxima”, realizada pelo Ministério Público de Goiás. Os jogadores eram aliciados a cometer fraudes durante jogos como um pênalti ou forçar um cartão amarelo ou expulsão para manipular resultados e favorecer grupos de apostas. Nos autos do processo do Superior Tribunal de Justiça Desportiva ainda foram citados mais de 50 jogadores brasileiros. Após o julgamento, foram estabelecidas também multas como compensação aos atos ilícitos que geraram lucros para um grupo de apostadores. No entanto, o afastamento, ou mesmo o banimento do futebol, terá um custo irrecuperável para os jogadores envolvidos.

A trapaça levanta diversas questões relacionadas à integridade do esporte, à responsabilidade dos jogadores e à eficácia das medidas disciplinares da FIFA. Para proteger a credibilidade do esporte e manter a confiança dos fãs, a federação internacional tem adotado uma postura mais rigorosa em relação a esses problemas nos últimos anos, implementando regulamentações mais rígidas e medidas disciplinares mais severas. Uma pesquisa realizada no ano passado pela Starlizard Integrity Services (SIS), divisão especializada em integridade da consultoria de apostas esportivas sediada em Londres, identificou, a partir de padrão de apostas anormais, 84 partidas suspeitas de manipulação no mundo, sendo 31% delas de alto nível.

O escândalo recente envolvendo jogadores brasileiros destaca a necessidade de uma vigilância ainda maior contra práticas desonestas, apostas ilegais e corrupção no âmbito esportivo. Suscita, também, uma reflexão sobre o campo ético-moral que permeia o futebol e os jogos de azar dentro do contexto histórico contemporâneo, que envolve a subjetividade dos sujeitos sociais e uma disputa em torno de valores e interesses hegemônicos. Além disso, evidencia a carência de programas de integridade e educação voltados para atletas, treinadores, dirigentes e árbitros alertando para a importância do cumprimento das normas e para as punições previstas nos casos de condutas ilegais.

A perspectiva moral individual de uma pessoa ou a posição de uma sociedade em relação aos jogos pode ser influenciada por muitos fatores: sociais, econômicos e culturais resultando em uma gama de opiniões sobre a moralidade de condutas em relação às apostas de uma maneira geral. Os Estados Unidos, por exemplo, têm um histórico de regulamentação de jogos de azar em nível estadual. Já o Reino Unido, atento à rápida evolução tecnológica que possibilitou o aparecimento de vários websites dedicados aos jogos de azar, criou novas leis e tem uma das mais desenvolvidas e regulamentadas indústrias de apostas do mundo. 

Como fenômeno cultural e social, que reflete os valores da sociedade, a ética no esporte está interconectada com a ética na sociedade em geral. Parte-se do discurso em torno do futebol como representante de um modelo de conduta. Portanto, a ética torna-se fundamental para preservar a integridade do esporte, que inclui o respeito às regras, o jogo limpo e o fair play, remetendo também a valores morais como honestidade, respeito e igualdade. 

Embora etimologicamente as palavras ética e moral se assemelhem no significado, filósofos, como Marilena Chauí (1994), apontam uma distinção entre os dois termos. Para Chauí, a moral normalmente está associada às normas e valores específicos de um grupo e pode variar de acordo com fatores culturais, religiosos e históricos.

A própria proibição da exploração dos jogos de apostas no Brasil, que eram permitidos até 1946, quando havia 71 cassinos no país gerando empregos, foi estabelecida a partir de um decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra sob o argumento de que o jogo é degradante para o ser humano. A decisão de cunho moral de Dutra, que segundo especulações teria sido influenciada pela primeira dama, envolveu uma questão ética. De acordo com Chauí, a ética seria uma reflexão mais abstrata e mutável no tempo e no espaço sobre os princípios morais universais que fundamentam a conduta humana.

No caso do esporte, no entanto, existe uma disputa de forças e visões de mundo que dificulta a tarefa de estabelecer parâmetros de ética no futebol. ” Assim, as diferentes classes têm expectativas muito desiguais em relação aos lucros “intrínsecos” (reais ou imaginários, pouco importa, pois são reais enquanto realmente desejados) (…) (BOURDIEU, 1983, p.15) Portanto, o próprio discernimento entre o certo e o errado, o direito e o dever estaria fundamentado em princípios morais que, no caso do esporte, foram combinados a ideologia elitista do amadorismo difundida nas associações esportivas europeias do século XIX e no ideário olímpico, que vão na contramão da ética utilitária do esporte-espetáculo dos dias atuais, enraizada no profissionalismo e nos interesses comerciais. 

Ademais, como explicar o fato de o jogo de azar ser considerado uma contravenção e seguir ativo no país sob as cortinas da ilegalidade? Em fevereiro do ano passado a lei 442 de 1991, que legaliza a operação, foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas ainda está em processo de apreciação pelo Senado.

As plataformas de apostas esportivas têm investido pesado em publicidade e suas marcas estão estampadas tanto nas placas de propaganda dos estádios quanto nas camisetas de diversos times de futebol. Só em julho deste ano o Governo Federal publicou, no Diário Oficial, a Medida Provisória 1.182/2023 regulamentando os sites de apostas de quota fixa, o “mercado de bets”, demonstrando que havia um consentimento tácito em relação aos apostadores e casas de apostas que operam regularmente hospedadas em servidores estrangeiros.

Na Inglaterra, país que aposta até no futuro da família real, os times da liga de futebol, a exemplo do que já acontecia na Espanha e na Itália, concordaram em vetar patrocínios de empresas de apostas na parte da frente das camisas dos times. A mudança entrará em vigor no final da temporada 2025-2026.

Incoerências e carências de regulamentação marcam tanto o mercado de apostas quanto o de futebol no Brasil. Muitas questões éticas estão em jogo. Trata-se de um campo em constante evolução à medida que novos desafios e problemas são identificados. No entanto, ao mesmo tempo em que se cobra do atleta a promoção e manutenção de valores éticos, é preciso que os clubes, instituições esportivas e em última instância o Governo Federal, operador há anos da loteria esportiva, jogo baseada em probabilidade e aleatoriedade como outros considerados de azar, estejam igualmente comprometidos em solucionar com transparência a crise de valores. 

A preocupação em taxar e regulamentar precisa caminhar pari passu com os estudos sobre os impactos dos jogos de azar na sociedade. 

Foto: Instagram @gabrieltota01

Enquanto isso não acontece, os jogadores banidos do futebol tentam outras tacadas de sorte. O goleiro Matheus Gomes está trabalhando como motorista de aplicativo e Gabriel Tota, réu confesso e segundo as investigações o jogador que mais lucrou com a quadrilha, vende espaço para divulgação em seu perfil no Instagram. É esperar para ver se a habilidade de Tota em manipular os quase 90 mil seguidores será igualmente lucrativa.


Referências consultadas

BOURDIEU, P. Como é possível ser esportivo. In: Questões de Sociologia Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

CHAUÍ, M. Ética e universidade. 46a Reunião da SBPC, Vitória, julho de 1994.

ESPN

Agência Brasil

Wikipedia

Câmara Federal

GE

Revista Fórum

Extra

Poder 360

Uol

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