Em 2017, quando anunciaram Paris como sede das Olimpíadas de 2024, amigos e familiares me marcaram nas redes sociais. Não é novidade para nenhum deles minha relação umbilical com a França. A resposta foi uma só: “Eu estarei lá”.

Foto: Jean-Marie Hervio / KMSP / PARIS 2024 / DPPI
De tempos em tempos, à medida que as notícias de Paris 2024 pipocavam no noticiário, as expectativas aumentavam. O projeto era, afinal, promissor: estabelecer “um novo modelo para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, comprometendo-se a entregar um evento ambicioso, espetacular e universal que [fosse] mais responsável, sustentável, unido e inclusivo” (PARIS 2024).
Os compromissos previam, entre outros, realizar a cerimônia de abertura – pela primeira vez na história das Olimpíadas modernas – fora de um estádio, e mais, no rio Sena, símbolo da capital francesa; organizar os Jogos mais sustentáveis da história, o que incluía o reaproveitamento de espaços já existentes, o uso de energias renováveis e soluções de baixo impacto ambiental; integrar as competições à vida urbana, com a montagem das arenas em espaços públicos, pontos turísticos ícones da cidade; despoluir o próprio Sena para provas como o triatlo e a maratona aquática; garantir a paridade de gênero em todas as competições; promover a inclusão social (CARVALHO, 2024).
Os ideais democráticos começaram a cair por terra ainda em 2022, assim que iniciaram as vendas dos ingressos para os Jogos. Para adquirir os tickets, era preciso fazer um cadastro no site oficial do evento (tickets.paris2024.org) e ter obrigatoriamente um cartão de crédito para efetuar a compra.
Apesar de terem anunciado ingressos a partir de 90 euros para a cerimônia de abertura – cerca de 540 reais (sem as taxas) – eu mesma não os vi. Em conversa com outros amigos e turistas, eles também não. Quanto mais se aproximava o evento, mais subiam os valores. Ao ponto de, em 2024, só haver ingressos a partir de quatro dígitos para as cerimônias de abertura e encerramento. Dois, três, quatro mil euros!
Os ingressos de 24 euros – preço mínimo comercializado – foram disponibilizados apenas para os jogos fora de Paris, em sua maioria para as partidas do futebol feminino. Nas competições em que havia disputa de medalhas, as cifras partiam dos três dígitos.
No final de 2023, outro anúncio gerou burburinho: o aumento das tarifas de transporte público em Paris durante o período do megaevento, mais precisamente entre 20 de julho e 8 de setembro de 2024. A viagem avulsa que era de 2,10 euros subiu para 4 euros (FRANCO, 2024).
Passagens de avião e hospedagens também duplicaram. Uma diária em acomodações alternativas como hostels ou regiões periféricas giraram em torno de 250 euros (1.500 reais); hotéis tradicionais médios, a partir de 450 euros (2.700 reais); em hotéis de luxo ou imóveis mais sofisticados, os preços chegaram a até 40 mil euros (o equivalente a 230/240 mil reais) a diária (SIMONETTI, 2024).
E não foi somente para os turistas que as Olimpíadas doeram no bolso. Tudo ficou mais caro. “Eles enlouqueceram” foi a frase que mais ouvi dos motoristas de aplicativo. Segundo eles, a ganância dos organizadores fez com que os turistas não aparecessem no volume esperado. Para todos com quem conversei, o número de corridas havia caído. Estavam furiosos também por outras razões. Havia bloqueios por toda a cidade. Os acessos às zonas centrais eram permitidos apenas para credenciados, mediante a apresentação de QR Codes específicos, após minuciosa inspeção policial.
O temor de atentados fez com que Paris se preparasse para uma guerra. A operação de segurança contou com aproximadamente 75 mil policiais. Estações de metrô próximas às arenas foram fechadas e linhas de ônibus tiveram suas rotas alteradas. Conforme apurou o correspondente da BBC Andrew Harding, cerca de 44 mil barreiras foram erguidas.
“Um grupo de turistas desapontados olhava melancolicamente através do labirinto de cercas de metal que margeavam o rio Sena. À frente deles, a catedral de Notre Dame e outros tesouros parisienses estavam, tentadoramente, fora do alcance”, descreveu o jornalista (HARDING, 2024).
Com a cidade sitiada e poucas possibilidades de assistir às competições por preços razoáveis, restou-me a alternativa de ver os jogos pela TV. As emissoras francesas disponibilizaram pelo menos quatro canais com transmissões 24 horas dedicadas às Olimpíadas. Tudo estaria resolvido não fosse um impasse: o foco era, obviamente, os atletas franceses. Quando muito a transmissão dos jogos decisivos e finais. “Pas de problème” [sem problemas], pensei. “Ainda posso apelar ao Globoplay ou à CazéTV”, detentoras dos direitos de transmissão do evento, para acompanhar os atletas brasileiros.
Foi assim que, para minha surpresa, descobri que o acesso aos conteúdos estava bloqueado, retornando uma mensagem que dizia algo como “sua localização não permite o acesso a esse conteúdo”. Importante ressaltar que a restrição se limitava às transmissões relativas aos Jogos. Novelas, filmes e outros conteúdos estavam liberados. O que me fez concluir que se tratava de alguma cláusula contratual dos acordos comerciais. Os direitos adquiridos por Globo e CazéTV restringiram-se ao território brasileiro.
Partindo para as considerações finais, não pretendo que esse texto soe tão-somente o relato frustrado de uma turista-pesquisadora-amante de esportes que viu suas expectativas ruírem.
Mais que isso, regressei ao Brasil refletindo sobre todos os imaginários, símbolos e discursos construídos em torno dos valores olímpicos e o quanto as instituições – incluindo a mídia –, marcas, patrocinadores valem-se disso em um evento com a magnitude de uma Olimpíada.
Em Paris 2024, muito falou-se em universalidade, igualdade, fraternidade, diversidade, inclusão. O que presenciei, porém, foi uma cidade repleta de bloqueios, controles e acessos fechados, ou melhor, exclusivos. Exclusivíssimos àqueles que pudessem adquirí-los com o poder do capital. Uma ‘cidade de exceção’, como bem definiu Oliveira (2024).
A Paris que prometeu realizar os Jogos mais igualitários, sustentáveis e inclusivos da história não apenas varreu os marginalizados de suas ruas, a exemplo de outras edições olímpicas (CNN Brasil, 2024). Com o intuito de integrar o megaevento à paisagem urbana, a cidade foi usurpada de seus próprios cidadãos.
Em última instância, não se trata de ser a favor ou contra os Jogos Olímpicos, mas de formar uma visão crítica evidenciando a ruptura entre discursos e práticas.
Referências
CARVALHO, Maria Paula. A um ano de Paris-2024, COI anuncia ‘uma nova era’ nas Olimpíadas. Folha de S. Paulo, 27 jul. 2023. Disponível em: A um ano de Paris-2024, COI anuncia ‘uma nova era’ – 27/07/2023 – Esporte – Folha (uol.com.br). Acesso em: 22 set. 2024.
CNN BRASIL. ONG’s denunciam “limpeza social” nas ruas de Paris antes dos Jogos Olímpicos. CNN Brasil, 17 jul. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/ongs-denunciam-limpeza-social-nas-ruas-de-paris-antes-dos-jogos-olimpicos/. Acesso em: 20 set. 2024.
FRANCO, Daniella. Preço dos transportes, circulação difícil, engarrafamentos: parisienses temem viver “pesadelo olímpico” em 2024. RFI, 01 dez. 2023. Disponível em: Preço dos transportes, circulação difícil, engarrafamentos: parisienses temem viver “pesadelo olímpico” em 2024 (uol.com.br). Acesso em: 22 set. 2024.
HARDING, Andrew. Como Paris está reforçando a segurança para os Jogos Olímpicos. BBC News, 24 jul. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4ng5y7n665o. Acesso em: 22 set. 2024.
OLIVEIRA, Nelma Gusmão de. Os Jogos Olímpicos e a cidade de exceção: poderia ser Paris 2024 a exceção da regra? Carta Capital, 09 ago. 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/os-jogos-olimpicos-e-a-cidade-de-excecao-poderia-ser-paris-2024-a-regra/. Acesso em 27 set. 2024.
PARIS 2024. Construindo um legado para os jogos. Disponível em: Paris 2024 – Construindo um legado para os Jogos (olympics.com). Acesso em: 20 set. 2024.
SIMONETTI, Giovanna. Quanto custa se hospedar nos hotéis mais sofisticados de Paris na Olimpíada?. Forbes, 23 abr. 2024. Disponível em: https://forbes.com.br/forbeslife/2024/04/quanto-custa-se-hospedar-nos-hoteis-mais-sofisticados-de-paris-na-olimpiada/. Acesso em 10 set. 2024.