O futebol é meu objeto de estudo.
O futebol é uma das minhas grandes paixões.
O futebol ocupa um espaço relevante na minha vida e isso significa ter que conviver com o bônus e o ônus desse tipo de relação.
Um desses ônus é conviver e ter plena noção de como o ambiente do futebol é um reduto preconceituoso, especialmente, no que diz respeito à homossexualidade.
Qualquer ameaça à masculinidade é rechaçada e às vezes isso é feito do pior modo possível.
A aversão à homossexualidade não é exclusiva do futebol, mas se estende aos esportes de um modo geral e, sobretudo, se estende à nossa sociedade.
Entretanto, em outras esferas da sociedade a homossexualidade ainda possui algum direito de manifestação e de defesa, sendo que o mesmo não ocorre em alguns esportes, entre eles o futebol.
No futebol a impressão que termos é que se pode tudo menos fazer qualquer gesto que “ofenda” os valores de masculinidade que circulam pelo universo do futebol.
O caso Richarlyson é exemplar dessa resistência da qual estou falando.
Vamos relembrá-lo rapidamente.
Em 2007, ao ser perguntado sobre o boato de que um jogador do Palmeiras assumiria sua homossexualidade, José Cyrillo Jr, então diretor do clube, respondeu que não, porque Richarlyson, embora sondado pelo Alviverde, já havia decidido fechar contrato com o São Paulo.
Irritado com essa declaração, Richarlyson entrou com uma queixa crime contra José Cyrillo Jr., pedindo cerca de 300 mil reais de indenização por danos morais.
A queixa crime de Richarlyson foi arquivada pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho sob alegação de que:
Já que foi colocado como lastro, este juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual(…)
Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas (…) não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol
Nessa sentença, fica claro que o juiz Manoel Maximiniano entende o futebol como um esporte que deve ser espaço privativo para homens heterossexuais, por isso ele afirma que caso Richarlyson seja homossexual “melhor seria que abandonasse o gramado”.
Devido a essas declarações de cunho discriminatório, em 2008, Manoel Maximiliano recebeu uma punição do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo impedido de receber qualquer tipo de promoção por merecimento pelo prazo de um ano.
Esse caso Richarlyson evidencia como o futebol é um espaço em que a homossexualidade é tratada como um crime.
Como propõe David Coad em seu livro Gay Athletes and the Cult of Masculinity, há nos esportes uma necessidade de os atletas permanentemente darem provas de sua heterossexualidade.
O que inclui negar qualquer boato acerca de uma possível homossexualidade, negação cuja necessidade se faz notar na imediata atitude de Richarlyson de processar José Cyrillo.
Necessidade de negação que se faz notar no recente episódio envolvendo o jogador do Corinthians, Emerson “Sheik”, que após divulgar uma foto na qual aparecia dando um beijo de selinho em um amigo foi alvo de críticas, sobretudo, de protestos vindos de parte da torcida do time paulista.
A reação de parte da Gaviões da Fiel – a principal torcida organizada do Corinthians – foi essa:

Inicialmente Emerson demonstrou irritação com esse tipo de reação e em entrevista declarou que o futebol era muito machista e que desejava:
[…] deixar bem claro que se alguém se sentiu desrespeitado, desculpa. Lá era o Emerson pessoa, não o jogador. Tenho enorme carinho pelo Isaac, que é um amigo muito especial. Ele é um queridão, a esposa está grávida de nove meses. E daí a galera levou para o lado errado. É um preconceito babaca. Tenho enorme respeito pelo torcedor do Corinthians. A página que postei tem foto minha dando selinho no meu filho. A Hebe beijava todo mundo. A brincadeira foi exatamente para abordar um assunto polêmico. Esse sou eu fora de campo. Para mim, é algo tão natural que não quero mais falar sobre isso – disse o jogador.
Essa primeira reação passava a impressão de que finalmente nasceria alguma reação contra o preconceito que tanto marca o futebol.
Mas a sequência dos acontecimentos foi extremamente desanimadora e deu mostras do tamanho da dificuldade de se fazer do futebol – e outros esportes – um espaço de diversidade.
Sexta-feira a Gaviões da Fiel emitiu um comunicado no qual afirmava que seus líderes haviam se reunido com o jogador Emerson e que dele ouviram um formal pedido de desculpas.
Assim afirma o comunicado:
Na tarde desta sexta-feira (23/08), a Diretoria dos Gaviões se reuniu com o jogador Sheik para conversar sobre o ocorrido no último domingo.
Emerson postou uma foto em uma rede social pessoal, postagem que gerou uma grande polêmica.
Em reunião com nossos dirigentes, Emerson disse que não imaginava tamanha repercussão e que não queria esse desgaste todo por conta de uma foto, que nos contou que também sofreu muito por conta dessa postagem e lamenta:
“Não poderia ter feito isso, foi sem intenção, mas jogo em um clube de futebol, em um mundo cheio de rivalidades e provocações, qualquer comentário é motivo de chacota”. Complementa dizendo: “Lamento se ofendi a torcida do Corinthians, não foi a minha intenção. Foi só uma brincadeira com um grande amigo meu, até porque eu não sou São Paulino“.
Gostaríamos de ressaltar que não temos nenhum tipo de preconceito, porém os Gaviões como a maior torcida organizada do Sport Club Corinthians Paulista tem o dever de dar satisfação e relatar tudo o que gera algum tipo de desconforto com o nome da FIEL TORCIDA. Emerson disse que também irá se retratar em suas redes sociais.
Diretoria Gaviões da Fiel Torcida
(Grifos meus)
Tudo que cerca esse episódio é bastante lamentável já que marcado pelo preconceito que se tenta negar quando se diz que “não temos nenhum tipo de preconceito” e pelo preconceito que se reforça ao afirmar que Foi só uma brincadeira com um grande amigo meu, até porque eu não sou São Paulino“.
Em 2010 o goleiro Bruno saindo em defesa do amigo Adriano, declarou que brigas entre casal era comum afinal: “quem nunca saiu na mão com uma mulher”?
A torcida não fez nenhum tipo de protesto.
Vagner Love ao tentar defender o jogador Diego Maurício que havia se envolvido em um acidente de carro, afirmou que: “Quem nunca deu uma porradinha e capotou? Isso é normal, gente.”
Em 2010, esse mesmo jogador foi fotografado ao lado de traficantes armados que faziam sua escolta em uma festa realizada na comunidade da Rocinha.
Nos dois episódios, não houve qualquer manifestação vinda da torcida contrária às atitudes do jogador.
Nesses momentos, tanto grande parte da torcida quanto grande parte da imprensa costuma dizer: “não importa a vida privada do jogador.”
Porém existe algo mais privado do que nossa sexualidade? Tão privado que interessa apenas a nós mesmos e cujas consequências dificilmente se estendem para além dos domínios de nossas vidas.
No futebol ao que parece a sexualidade não é privada e precisa ser manifestada, manifestada de modo a comprovar constantemente a virilidade dos jogadores.
Qualquer ameaça aos ideais de masculinidade que cercam o futebol é imediatamente rechaçada.
No futebol, o preconceito em relação à homossexualidade sempre vence ao final.
Mas esse é um caso em que a derrota se faz necessária, porque afinal de contas estamos falando do esporte mais popular do país e um dos mais populares do planeta.
Por sua força, que ele seja plural ou que pelo menos que tente ser.