Quando o futebol chegou à América do Sul, encontrou no Brasil um território fragmentado, o que contribuiu para a existência de diferentes “futebóis” no País. Pois, ao chegar de maneiras distintas em cada região, o primeiro contato do brasileiro com o esporte inglês também possuiu particularidades aonde quer que chegasse, seja através de portos, indústrias ou escolas.
Não podemos localizar um único ponto no território do Brasil a partir do qual o futebol, como inovação, tenha se introduzido e se difundido espacialmente. […] Verifica-se, então, um caso atípico, no qual o futebol penetra no território nacional quase simultaneamente por vários pontos desconectados entre si (mas conectados com o exterior), como incursões independentes no movimento conjunto da difusão. (MASCARENHAS, 2014, p. 49, grifo nosso).
De um modo geral, o processo de introdução e difusão espacial do futebol no Brasil “obedeceu” à heterogeneidade da base territorial: a distribuição e a estrutura do sistema urbano, as conexões com o exterior, o dinamismo de cada cidade e particularmente a geografia do Imperialismo Britânico, que em determinado período imprimiu-se de forma destacada na composição técnica do território brasileiro. Somente num segundo momento, é que as metrópoles nacionais nascentes passaram a atuar como difusoras do futebol. Neste quadro, torna-se difícil precisar uma única ou principal “porta de entrada” do esporte das multidões no Brasil. (MASCARENHAS, 2002, p. 90).
Quando o futebol inicia sua larga difusão planetária (1880-1900), encontra no Brasil um território fragmentado e com uma diminuta base urbana: menos de um décimo da população brasileira vivia em cidades em 1900. […] somente a partir de 1930 o território conhecerá o início de sua integração efetiva. (MASCARENHAS, 2014, p. 56).
O país mais exitoso internacionalmente de toda América Latina no futebol, o maior fornecedor de heróis futebolísticos do planeta, o único ganhador de cinco Copas do Mundo, o que foi apelidado O país do futebol ou A pátria de chuteiras, organizou sua Federação nacional em 1914, duas décadas depois que a Argentina e 15 anos mais tarde que o Uruguai; e só teve um torneio nacional, em que participaram times de diversas partes do imenso país (a Taça Brasil), em 1959 (…) uma história da invenção do futebol brasileiro deverá ser, necessariamente, as múltiplas histórias de suas múltiplas fundações. E dentre elas, uma em particular: a fundação de seu futebol mestiço (ALABARCES, 2022, p. 99).
Como ressaltado, a dimensão continental e a forma dispersa que o futebol chegou no País resultou em características heterogêneas de se jogar o esporte. O futebol gaúcho, por exemplo, possui características muito específicas, resultado de sua aproximação geográfica com a Argentina e o Uruguai. Tal aproximação resultou o imaginário de um futebol de força e resistência, que lembra o estilo de vida sulista, enquanto o futebol de estados como Rio de Janeiro e São Paulo são associados à ideia de um futebol arte, com dribles e técnicas que rendem aplausos de todo o estádio.
De fato, em várias partes do mundo o futebol expressa a tradição social e política das localidades, sendo no sul do Brasil não muito diferente. Desde a minha infância escutei que o jeito de jogar dos gaúchos era diferente do restante do Brasil, sendo adjetivados com força ou raça. Mas afinal? Existe ou já existiu um futebol tipicamente gaúcho?
Para que essa pergunta seja respondida, voltemos ao ponto de partida: No início deste texto dei destaque para a chegada do futebol no Brasil, que como já ressaltado chegou ao País de diferentes maneiras e de forma relativamente tardia. No caso do futebol gaúcho, “Ainda que favorecido pela cercania com Uruguai e Argentina permaneceu relativamente isolado do centro brasileiro” (ALABARCES, 2022, p.112). Nesse contexto, um modelo de futebol tipicamente gaúcho não tardaria a ser construído embora como será visto no decorrer da pesquisa, tivesse um prazo de duração.
Em relação às características de um típico futebol gaúcho, Guimarães (2018) aponta que:
Alguns atributos passaram a ser considerados para revelar uma “identidade do futebol gaúcho”, como virilidade e valorização de um estilo mais próximo ao adotado nos países vizinhos do estado, como o Uruguai e a Argentina. A identidade do futebol gaúcho foi assumida pelo estado e a prática competitiva de futebol não demoraria a chegar à capital. (GUIMARÃES, 2018, p. 41, grifo nosso).
Damo (1999, p. 95), também complementa:
Em termos genéricos, o estilo do futebol gaúcho resulta da apropriação, por parte dos futebolistas – sejam eles torcedores, dirigentes, jogadores ou cronistas esportivos –, de um discurso preestabelecido de culto às tradições.
Outros fatores como o clima hostil – frio, chuvoso etc. – e, por extensão, os gramados enlameados do interior do estado, exigiriam mais ênfase na preparação física dos jogadores em detrimento da técnica e, consequentemente, isso teria sido determinante para o estilo diferenciado do futebol gaúcho, mais europeu e portenho do que propriamente brasileiro. (DAMO, 1999, p. 97).
Desde a chegada do esporte ao estado, é claro que o futebol gaúcho adquiriu algumas características próprias. De fato, a forma de se jogar futebol dos clubes se assemelham a um estilo muito mais argentino e uruguaio do que brasileiro, sendo inegável a influência platina em suas primeiras décadas, principalmente no estilo de jogo de times do interior do estado. Em grande parte, tal característica ocorre por questões “geográficas”. Contudo, essas características têm ganhado mudanças ao longo do tempo. Com a maior integração do Brasil, esse estilo de futebol mudou: o Rio Grande do Sul deixou de ser um estado “isolado”, possuindo nos dias de hoje, em seus clubes, jogadores de diversas partes do Brasil.
Elenco campeão da Libertadores de 2010 pelo Sport Club Internacional: os jogadores brasileiros do Colorado vinham de diversos estados do Brasil além do RS.
Cabe ainda frisar que jogadores e técnicos gaúchos também saíram do Rio Grande do Sul para exercerem sua profissão em outros estados do País ou mesmo em outros países do mundo. O jornalista Filipe Duarte, conta ao leitor em Escola Gaúcha de Futebol (2021), que “Telêmaco Frazão de Lima, reconhecido como primeiro técnico gaúcho a ganhar status, ultrapassou a fronteira estadual para assumir o Clube de Regatas Vasco da Gama em 1942” (DUARTE, 2021, p. 145). As migrações continuaram acontecendo ao longo das décadas e nos dias atuais essas mudanças de estado acontecem com uma constância ainda maior, existindo um futebol com características diversas, seja no próprio estado do Rio Grande do Sul, como em todo o restante do Brasil. Sobre o assunto, Duarte nos aponta o exemplo de Renato Portaluppi, dizendo:
O apelido com que é chamado no restante do Brasil, Renato Gaúcho, só se explica pelo fato de ser natural de Guaporé, na região da Serra Gaúcha. Ao estabelecer residência na orla de Ipanema, o ídolo gremista absorveu muito mais do que o sotaque carioca, adquirindo também toda a visão de mundo do lugar que escolheu viver, bem como o gosto pelo futebol ofensivo, quase irresponsável. (DUARTE, 2021, p. 147).
Assim como Renato, tantos outros técnicos e jogadores do estado sul-rio-grandense ensinaram e aprenderam diversos modos de se jogar futebol, ficando apenas no imaginário um modo particularmente gaúcho de se praticar o esporte. Escrever sobre o imaginário de um futebol tipicamente gaúcho é também analisar tempo e espaço (palavras importantes para a ciência geográfica). A lenta integração nacional contribuiu para uma maior proximidade de culturas, quando se analisa o estado do Rio Grande do Sul e os países platinos Argentina e Uruguai. As semelhanças nas primeiras décadas do século passado vão além dos domínios morfoclimáticos e culinários: chegam ao futebol.
Contudo, com o passar do tempo, o espaço se modificou e o território brasileiro passou por uma lenta, mas constante integração. Os meios de transporte e os de comunicação, agilizaram e agilizam o processo e os diversos “futebóis” brasileiros se encontraram. Ainda fazendo a contextualização sobre as modificações do futebol no Brasil, devido à sua maior integração com o passar das décadas, cabe lembrar que embora nos dias de hoje os times de um estado possuem um elenco de diversos locais, foi apenas em 1930 que se deu início a uma integração nacional e somente em 1971 aconteceu o primeiro Campeonato Brasileiro de Futebol, demonstrando uma diferença considerável em relação às competições de décadas anteriores que ainda eram bastante regionais: o Brasil se integrava também dentro das quatro linhas.
Devido a diversos fatores, sejam eles políticos, ou até a maior facilidade de locomoção de um estado para outro, a ideia de um futebol tipicamente gaúcho, poderia ser aceita até as primeiras décadas do século passado. Entretanto, as mudanças no espaço também impactaram o futebol, sendo um futebol particularmente sul-rio-grandense existindo, nos dias de hoje, apenas no imaginário. Imaginário não estritamente de torcedores, mas inclusive de profissionais do futebol.
No Rio Grande do Sul, um regionalismo é visto (e ouvido) dentro e fora dos estádios. O imaginário de um futebol tipicamente gaúcho – ou ao menos o imaginário de um futebol que se diferencia do restante do Brasil – nos parece hoje uma ideia de um contexto já datado. Permaneceu só o imaginário, sem grande lastro em evidências materiais, quer dizer, se já foi, no passado, mais ativo, hoje apenas alude a uma relação reducionista (o que não deixa de alimentar imaginários). Ou seja, o imaginário de um futebol territorializado culturalmente pode manter-se atrativo (e envolver inclusive analistas técnicos do jornalismo esportivo) independentemente de encontrarmos hoje fatores concretos para sustentar que estilos heterogêneos no futebol brasileiro teriam um fundo de ordem regional.
Referências
ALABARCES, Pablo. História mínima do futebol na América Latina. São Paulo: Ludopédio, 2022. (col. Academia Ludopédio, v. 2).
DUARTE, Filipe. Escola gaúcha de futebol: a árvore genealógica dos treinadores do Rio Grande do Sul. São Paulo: Ludopédio, 2021. (col. Campo de Jogo, v. 4).
GÖTZ, Ciro Augusto Francisconi. Narradores de futebol, dos desbravadores aos contemporâneos: estilo e técnica da locução no rádio porto-alegrense (de 1931 a 2015). 2015. 296f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, PUCRS, Porto Alegre.
GÖTZ, Ciro. Vozes do gol: história da narração de futebol no rádio de Porto Alegre. Florianópolis: Insular, 2020.
MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: UERJ, 2014.
GUIMARÃES, Carlos Gustavo Soeiro. O comentário esportivo contemporâneo no rádio de Porto Alegre: uma análise das novas práticas profissionais na fase de convergência. 2018. 197f. (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
URBIM, Carlos. RS: um século de história. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.