Quando faço a reflexão sobre o que ainda esperar de heróis contemporâneos do universo esportivo que já conquistaram quase tudo o que seria possível, jamais ousaria imaginar os recentes acontecimentos noticiados pela imprensa mundial. E são esses mesmos que me fazem trazer de volta ao blog a temática dos heróis esportivos e suas jornadas de conquistas. Sim, as trajetórias esportivas do ciclista norte-americano Lance Armstrong e do corredor paralímpico sul-africano Oscar Pistorius fizeram desses atletas verdadeiros heróis e fenômenos de idolatria reconhecidos mundialmente. E agora os dois mitos esportivos caem por terra com a confissão de doping de Armstrong e com a acusação de Pistorius por homicídio de sua namorada, a modelo Reeva Steenkamp, ocorridos em janeiro de 2013 e no último dia 14 de fevereiro, respectivamente.
A narrativa em torno do herói clássico remete à luta, superação, redenção e glória de um povo, cumprindo a missão de representar a comunidade e trazer dádivas para os seus semelhantes. É possível identificar alguns desses aspectos nas carreiras de Armstrong e de Pistorius. Segundo o sociólogo Helal, “um fenômeno de massa não consegue se sustentar por muito tempo sem a presença de ‘heróis’, ‘estrelas’ e ‘ídolos’, que exerçam enorme fascínio na comunidade” (Helal, 2001: 154). São esses atletas heróis que levam as pessoas a se identificarem com determinado evento esportivo. A partir dessa reflexão, fica mais fácil compreender também a idolatria em torno desses atletas quando conhecemos suas histórias de vida e conquistas esportivas.
A história de Oscar Pistorius se encaixa na saga do herói clássico de Joseph Campbell, desde seu nascimento complicado seguido de toda uma infância de superação até as últimas conquistas e glórias, além das batalhas nos tribunais esportivos. Pistorius nasceu em 1986 com má-formação na fíbula em cada uma das pernas. Praticou várias modalidades esportivas na escola e foi apresentado ao atletismo quando rapidamente teve ascensão nas pistas de corrida. Em 2004, usando um par de Flex-Foot Cheetahs, o sul-africano virou sensação mundial ao conquistar a medalha de ouro nos 200m T44 nos Jogos Paraolímpicos de Atenas, quebrando recorde com o tempo de 21.97s. Estimulado por suas conquistas em competições paralímpicas, Pistorius voltou suas atenções para o desejo de competir com atletas sem deficiência, quando em 2005, no Campeonato Sul-Africano terminou em sexto lugar nos 400m. Esse episódio reflete outra característica da jornada do herói, quando o atleta é chamado ao desconhecido, a sair do seio da sociedade para enfrentar novos obstáculos. Assim, a carreira de Pistorius foi sempre pautada por novos desafios. Suas próteses geraram várias controvérsias, levando Pistorius a travar uma batalha no Tribunal de Arbitragem do Esporte para competir entre atletas sem deficiência. Em 2012, Pistorius conseguiu realizar seu maior sonho e se classificou para o 400m nos Jogos Olímpicos de Londres, o primeiro com dupla amputação a fazer parte da competição, e acabou eliminado na semifinal da competição.
Contudo, no último dia 15 de fevereiro, o assassinato de sua namorada transformou a imagem de ídolo do atleta. Até então, Pistorius , com 26 anos, era apontado como um dos grandes heróis da África do Sul pós-Apartheid. Os africanos recorreram ao esporte para encontrar a nova personalidade que representaria o país: o atleta que era o exemplo de coragem e perseverança. Em um primeiro momento, a notícia da morte da modelo Reeva foi tratada como um trágico acidente, quando mais tarde o caso passou a ser investigado como homicídio e Pistorius apontado como principal suspeito. De grande ídolo nacional sul-africano, herói, Pistorius poderia passar ao posto de “vilão” se condenado.
Já o ciclista Lance Armstrong, confessou em janeiro recente, no The Oprah Winfrey Show – programa de entrevistas com celebridades e anônimos de grande audiência nos EUA, aquilo que relatórios da Usada Agência Antidoping dos Estados Unidos (Usada) já haviam apontado e, até então, o atleta vinha negando. A carreira de sucesso e conquistas de Armstrong foi pautada no uso de substâncias ilícitas no esporte, vivendo uma farsa durante anos. De acordo com a Usada, o sucesso e a quebra de recorde obtidos nos sete títulos da Volta da França foram com uso de eritropoietina (EPO), transfusões de sangue e hormônios de crescimento, num esquema profissional e sofisticado de programa de dopagem.
“Era uma história perfeita, mítica. E não era verdadeira. Fiz as minhas próprias decisões. Foram meus erros. Estou aqui para pedir desculpas” – afirmou Armstrong no The Oprah Winfrey Show. (Confira o vídeo da entrevista clicando na imagem)
Também na carreira de Lance Armstrong é possível identificar os arquétipos da jornada mitológica do herói. Nascido no Texas – EUA, o ciclista teve uma infância difícil quando ele e sua mãe, Linda Mooneytham, foram abandonados pelo pai. Aos 21 anos, venceu sua primeira competição mundial, o Campeonato do Mundo de Ciclismo em Estrada. Mais tarde, a vitória no Campeonato do Mundo de Oslo mostrou que Armstrong era um ciclista completo e disposto a enfrentar os desafios do esporte.
Em 1996, o atleta foi diagnosticado com um câncer no testículo e não se rendeu à doença. O atleta criou a “Fundação Lance Amstrong” para a luta contra o câncer e escreveu livros de sucesso relatando sua experiência com a doença, além de envolver toda a comunidade em ações de marketing na colaboração com instituições que lutam pela cura da doença. Após a cura do câncer, Armstrong voltou às competições em 1998 e conquistou sua primeira das sete vitórias na Volta da França no ano seguinte. Neste mesmo período, começou a tomar uma droga que simula efeitos da testosterona no organismo, sendo este o início de uma trajetória de doping até o fim de sua carreira em 2012.
A primeira acusação de doping foi em 2005 e no ano seguinte Armstrong foi inocentado. Em junho de 2012 a Usada acusou Lance Armstrong formalmente por doping, com base em análises de amostras sanguíneas do atleta de 2009 e 2010, além de testemunhos de outros ciclistas. Em outubro do mesmo ano, a União Internacional do Ciclismo (UCI) retirou os prêmios do atleta, além de declarar que não poderia mais voltar a participar de provas oficiais, acabando com o mito do imbatível ciclista. Na entrevista para a apresentadora Oprah, Armstrong afirmou que relutou em contar a verdade para o público devido à imagem de herói que foi construída em trono dele. A história perfeita sobre a superação de uma doença, a conquista da Volta da França sete vezes e um casamento perfeito havia caído por terra. A farsa havia sido desfeita.
O fato curioso que chama a atenção frente aos recentes acontecimentos é a forma como a sociedade lida com o fracasso e a idolatria em torno de Pistorius e Armstrong. O primeiro pode ser apontado como o herói problemático, para o qual a população sul-africana procura uma explicação que possa justificar a brutalidade que envolve o assassinado de Reeva. (Leia matéria na Folha Online). Seria Pistorius o herói que acaba por desmontar sua própria história, enquanto a comunidade assiste o mito ruir? Já Armstrong pautou toda sua carreira numa farsa, trazendo para a sociedade o sentimento de “traição”, de ter sido enganada. Seria ele o herói frio, capaz de trapacear com a idolatria construída em torno de sua imagem?
Heróis sim, Pistorius e Armstrong. E fracos também. Heróis construídos com pés de barro como na interpretação do sonho do rei Nabucodonosor pelo profeta Daniel, no Antigo Testamento da Bíblia (livro de Daniel, capítulo 2 – Dn 2, 1-49). Numa estátua construída de glórias e conquistas representadas pelo ouro, prata e bronze, os pés de barro simbolizam a parte mais fraca na base, no ser humano. Com os atletas aconteceu conforme no sonho do rei: a estátua simbolizava a grandiosidade de Armstrong e Pistorius, todas as suas glórias, vitórias esportivas e pessoais. Porém tudo seria apenas aparência como no sonho interpretado, pois bastaria uma pedra, uma fraqueza para deixar o mito em pedaços, o herói destruído. E bastou.
O herói moderno não deve esperar ser orientado e salvo pela comunidade, e sim acontecer o contrário (Campbell, 1995: 376). Mas parece que Armstrong e Pistorius ainda esperam uma redenção da comunidade, invertendo os papéis na saga mitológica. E se existisse uma forma de compreender o que se passou com esses atletas, talvez fosse mais fácil tentar justificar os acontecimentos lembrando que eles não são super-homens. Só que em nenhum dos dois casos se trata de uma simples fraqueza humana, é muito mais grave, mais sério. A farsa de Armstrong é o “pé de barro” de toda sua carreira esportiva. Já com Pistorius, não há como contestar suas glórias esportivas. Logo, seu “pé de barro” está na condenação de suas atitudes enquanto ator social. Por fim, poderia afirmar que a imagem de mito herói desses atletas está ruída.
Referências
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Cultrix, 1995.
HELAL, Ronaldo; SOARES, Antonio e LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol: Mídia, Raça e Idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
É preciso deixar claro a contribuição do parceiro de todas as horas, Vinicius Guimarães, na reflexão proposta neste texto com ideias, discussões e críticas sempre relevantes.
Bom texto Camila. Nos faz pensar e refletir. Parabéns!