Hillsborough 28 anos: como uma farsa jogou os mais pobres para escanteio no futebol inglês

15 de abril de 1989. Sheffield era o palco de um jogo esperado por um país inteiro: Liverpool e Nottingham Forest disputariam a semifinal da Copa da Inglaterra, o torneio de futebol mais antigo do mundo. Milhares de torcedores do Liverpool foram, com ou sem ingressos, para a cidade de 500.000 habitantes acompanhar de perto a partida, que até hoje é lembrada com tristeza e indignação pelo que ocorreu antes mesmo do sexto minuto de bola rolando.

O estádio de Hillsborough, com capacidade para 40.000 espectadores e construído para a Copa do Mundo de 1966, só possuía uma entrada para todos os torcedores chegarem às arquibancadas. Uma multidão de torcedores – muitos deles com ingressos na mão – se aglomerou a poucos metros dos portões. O efetivo policial estava aquém numericamente e despreparado. Vinte minutos antes do pontapé inicial da partida, é dada pelo chefe da polícia local a ordem para que as catracas fossem liberadas. Na verdade, havia sido dada uma sentença de morte.

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Catracas livres levaram à superlotação em setor atrás de um dos gols.

Noventa e seis torcedores do Liverpool morreram. Os fatos apontavam para uma clara incapacidade das autoridades públicas locais em garantir a segurança, além da negligência de se marcar um jogo de futebol de grande porte para um estádio sem a infraestrutura adequada.

No entanto, o que as autoridades locais também demonstraram, de forma inacreditável, foi o descomprometimento com a verdade. Um relatório apresentado meses depois responsabilizou os próprios torcedores pela tragédia, que estariam “bêbados e causando confusão”. Em 2012, após anos de batalhas judiciais travadas por familiares das vítimas, a decisão baseada nesse relatório foi anulada. Uma nova investigação foi iniciada e, no ano passado, chegou-se à única e verdadeira conclusão: a polícia do condado de South Yorkshire, onde está localizada a cidade de, Sheffield foi responsabilizada pelas mortes.

Depoimentos de policiais que haviam trabalhado na segurança do jogo foram alterados para criar uma mentira. Não havia um grande número de latas de cerveja ou outras bebidas alcoólicas nos arredores do estádio. Não houve conflitos de grandes proporções entre torcedores, bem como estes torcedores não forçaram a entrada no estádio. As catracas, de fato, foram liberadas por decisão própria dos policiais.

A Justiça tardou, mas corrigiu esse erro. Mesmo assim, algumas consequências da tragédia de Hillsborough impedem até hoje que o futebol na Inglaterra seja um ambiente mais democrático e popular de torcer. A opinião pública, chocada e vítima da manipulação dos fatos, tratou o episódio, à época, como “A gota d’água”. A partir de Hillsborough, iniciou-se uma intensa campanha, liderada até pela então primeira-ministra Margaret Thatcher, para higienizar os estádios, com intuitos não só esportivos e econômicos, mas políticos.

A infraestrutura dos estádios se modernizou, a violência entre torcedores diminuiu significativamente com a adoção de medidas punitivas eficazes e os campos deixaram de ser um lugar visto com temor. Nada viria de graça, todavia. Em contrapartida, foi pavimentado o caminho para a elitização do público e para perseguição de quaisquer torcidas organizadas, até mesmo as pacíficas, através da criação da Premier League em 1992, em substituição ao antigo campeonato inglês.

Os Hooligans, como foram taxados “os brigões do futebol” dos anos 1980 eram, em sua maioria, também associados a sindicatos de trabalhadores da indústria e do comércio ingleses, que faziam oposição a Thatcher durante seu governo, entre 1979 e 1990. A violência dos Hooligans nos estádios também serviu como pretexto para enfraquecer esses sindicatos e implementar medidas que retiraram direitos trabalhistas e sociais.

Três décadas depois, a Premier League é o campeonato nacional mais valioso do mundo. A liga é frequentemente elogiada pela organização e suas partidas são vistas todos os finais de semana por bilhões de fãs de futebol, dos EUA à Ásia. No entanto, o legado está longe de ser uma unanimidade: as arquibancadas cada vez mais se manifestam contra esse aparente “mundo dos sonhos”. O preço do ingresso, o mais alto da Europa, é hoje o principal fator de elitização nas arquibancadas inglesas.

Segundo levantamento anual elaborado pela emissora britânica “BBC” sobre o preço dos ingressos, o Manchester City é o que oferece, em média, o valor mais barato do ticket. Mesmo assim, o valor é considerado abusivo pelos torcedores do clube.

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Os programas de sócio-torcedor adotados, com a venda de carnês para todos os jogos da temporada de cada clube, criaram uma nova fonte milionária de receita e fidelização, mas impedem ainda mais o torcedor pobre de ir aos jogos. Ele costuma ir ao estádio só quando o dinheiro sobra e somente pode comprar seu ticket na bilheteria. Esse torcedor ainda existe, mas foi deixado para trás, e se vê obrigado, na maioria das vezes, a ficar no ostracismo, na frente de uma tela de TV.

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Torcida do Liverpool protesta contra a elevação do preço do ingresso na Premier League, de 4 libras (R$ 15), antes da criação do campeonato para 43 libras (R$168) em 2010.

No Brasil, o cenário não é diferente justamente pelo consenso equivocado de que esse modelo, aplicado inicialmente na Inglaterra e depois no mundo, é o ideal e capaz de ser reproduzido em qualquer campeonato no mundo e em qualquer realidade socioeconômica. Uma das consequências mais negativas da Copa do Mundo de 2014 para os torcedores tenham sido as novas arenas, sem dúvida mais seguras e confortáveis, mas cujo custo elevado de manutenção acaba sendo transferido para o valor do ingresso.

Essa tendência de encarecimento já podia ser constatada desde o início dos anos 2000. Os novos estádios, construídos e reformados para o mundial e que, ao todo, custaram R$ 8 Bi, tendem a acelerar o processo de elitização a médio prazo.

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Estudo da Consultoria Delloite revelou que, enquanto a inflação do Brasil foi de 54%, no acumulado entre 2005 e 2014 (IBGE), o preço médio dos ingressos subiu 276% no mesmo período.

É difícil matar a paixão por um clube. Cada um torce de um jeito, aplaudindo ou berrando. Paixão não deveria, em tese, ter classe social. É inegável, porém, que entre os torcedores mais pobres ela tem sido sistematicamente abalada na Inglaterra, no Brasil ou em outros campos mundo afora. A realidade do esporte globalizado envolve muitos números e cifras, além de planejamento. Por isso, não deve haver mais espaço para dirigentes amadores. O desafio é equilibrar interesses muitas vezes opostos. Plural, democrático, popular e fascinante, a essência do futebol não pode ser perdida. Se isso não for preservado, o que tanto amamos ficará à imagem e semelhança da política, por exemplo: endinheirada, mas completamente sem encanto.

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